A BOQUINHA AMARGA

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{1 de março de 2017}

Eu era bonitinha e recebia paqueras do cara que estava sentado a minha direita no auditório do teatro. Eu usava um blazer, coisa que jamais usei na vida, detesto, acho masculino e ficava o tempo todo folheando uma pilha de revistas BAZAAR. Mesmo assim ele, que lembrava uma versão masculina do Leo da Uni Design, uma vez que o Leo era muito gay, começou a me dar bola, mas cada vez mais e mais a coisa ia descambando para coisas desabonadoras para minha feminilidade. Primeiro ele acha que meu hálito é ruim. Me chama de “ boquinha amarga ”.

Depois eu apoio a cabeça no ombro dele e acho que babo um pouco, como se babasse no travesseiro. Tudo bem que é algo, mas ele reage com um nojo que acho exagerado. Mas então aquilo tudo me atinge mortalmente. Digo mortalmente pois é como se tivesse sido atingida por uma facada mesmo. Fico profundamente triste. Vou ficando cada vez mais apagada em todos os sentidos. Existe uma espécie de vingança nisso em parte. Mas o ponto é que não enxergo opção.

Tem uma hora estou mergulhada em tristeza sentada ao redor de uma mesa redonda com minha família e minha mãe começa a comentar mais ou menos ( não lembro exato) sobre a ausência de trabalhos meus não sei onde. Eu poderia tentar explicar, dizer que meus trabalhos existem, mas de puro ressentimento por ela estar comentando como se não existissem fico quieta e quando ela, na falta de resposta minha, começa a comentar sobre umas fotos de céu que minha irmã havia tirado, eu me forço a comentar:

– Sim, as fotos de céu dela são muito bonitas.

O ponto é que é mais que simples ressentimento contra o mundo, eu estou promovendo uma profunda auto anulação porquê de certa forma sinto que não tem outro jeito. Sinto como se a desaprovação de outras pessoas fosse algo de vida ou morte para mim e uma vez que minhas coisas ( minhas beleza e minha criação ) não poderiam viver mesmo uma vez que só recebiam feedback ruim, eu já os matava dentro de mim. Isso era o que eu achava.

Aí a coisa muda.

Há uma moça que lembra muito uma que surgiu num sonho recente e eu defendia dizendo que era esforçada. Essa figura é coisa nova nos meus sonhos. A palavra é desprovida, ela era desprovida de qualquer beleza e encanto. Não era feia, veja bem, era desprovida de tudo isso. Era jovem com um rosto claro e limpo mas sem charme nenhum, cabelo curto negro encaracolado, magra e alta, vestindo uma roupa negra vintage muito sem graça.

Ela está sofrendo muito e chora e chora de desespero e muitas pessoas inclusive minha mãe tentam consolá-la, mas de jeito errado.

Somente eu sei o que fazer. Com autoridade tiro a moça daquele meio. A levo até a sala ao lado onde a sento numa espécie de assento grande de cimento redondo. As pessoas que estavam na cena anterior me seguem porquê querem ver o que vou fazer. Estou fazendo com a moça o que faço com crianças e ela está mesmo tão profundamente traumatizada que está num nível infantil. Não infantilizada, mas no sentido de estar vulnerável. A dor dela é real, isso não se questiona. Primeiro a acalmo, falo aquele “Shhhh” que falo para crianças e então noto, no teto, e isso é outro elemento que vem se colocando através dos sonhos, desde aquele sonho em que pinto o teto de azul usando só o pensamento, até o sonho No alto, o sonho do cocô de ouro da arara.

No teto há uma espécie de pequeno retângulo azul do tamanho de uma caixa de cigarros. Eu SEI que DEVO fazer a moça olhar aquilo. Mas me detenho demais em ficar consolando ela, ao invés de já fazer ela olhar o retângulo, que era, eu sentia,o que de fato iria ajudá-la.

SONHOS COM ESSA PERSONAGEM " A POBRE MOÇA DESPROVIDA "

Ela é sincera e dedicada

Ela raciocina tudo direitinho

IMAGE CREDITS MILLES ALDRIDGE | GEORGINA STOJILJKOVIC | VOGUE JAPAN SEPTEMBER 2008

A BOQUINHA AMARGA

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