OS CETSERES

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Começa em um refeitório grande de azulejos brancos que parece refeitório de college americano de filme, cheio e animado. Eu também estou com uma roupa branca, mas não junto com as pessoas. Ao invés disso, fico entrando e saindo do banheiro do refeitório, onde tem um homem grande e negro.

Não sou completamente humana, sou uma espécie de oráculo, uma anja, uma vestal, mas existe alguma coisa de infantil em mim. Não sou uma mulher adulta. Esse meu poder mágico é bem real, eu não estou fingindo e estou gostando muito de ser aquilo.

O homem negro tem três perguntas para me fazer, todas muito sérias e importantes, do tipo que eu faria se encontrasse um oráculo. Respondo uma pergunta por vez, saindo do banheiro logo em seguida e depois retornando para que ele me faça a próxima. Estou muito protetora e amorosa em relação ao negro e tudo o que eu respondo é positivo e animador. Para responder a terceira pergunta, vou desenhar um coração no peito do negro (já sei qual é a terceira pergunta antes que ele a faça, afinal, sou um oráculo). Mas antes que ele me faça a pergunta, ele fala uma coisa que me faz ficar com desconfiança de que na verdade seja maligno e perigoso: fala sobre os cetseres que ferem sei lá o que. Fico com medo e saio do banheiro. Penso: se ele for mau é melhor não ficar aqui sozinha com ele. Ele é muito grande. É engraçado porque também desaparece minha personalidade sobrenatural. Assim que tenho medo, passo a ser humana.

Ele me segue, vai até a geladeira do refeitório, abre e fala alguma coisa sobre os cetseres e as lagostas da geladeira. Cada vez que ele fala cetseres, eu vejo a palavra escrita na minha frente, com C. Fico com mais medo ainda e tenho certeza de que ele é mau. Fujo para a rua. Está chovendo torrencialmente, mal dá para andar de tão forte que é a chuva, mas não é desagradável por que a água está quentinha. Sento no meio da rua num caixote e estou triste.

O homem negro me seguiu. Ele vem todo preocupado saber o que eu tenho. Eu digo que ele falou aquilo sobre os cetseres e que ele é mau. Ele explica então que cetseres são os seres que ferem as criaturas vivas, entre elas as lagostas. Percebo que ele é bom e volto a ficar feliz. Ele também. Nós dois nos jogamos na correnteza rindo como crianças, de alegria. Aí levantamos e vamos andando pela rua sob a chuva, para voltar ao refeitório. Ele fala para eu andar mais perto dele, mas eu não quero, porque não acho ele atraente.

Então passamos por umas casinhas. Um menino de uns dez anos está no quintal na frente de uma casa, chorando e tentando fritar dois ovos debaixo da chuva. A avó dele está no alto da escada, na entrada da casa, chamando por ele, mas ele não vai. Ele tinha mandado a irmãzinha dele ir não sei aonde e agora ela estava pegando essa chuva toda e ele achava que ela ia morrer. A última coisa que a irmãzinha tinha dito era que queria comer ovo frito e era isso que o menino fazia, num ato patético de puro desespero, por não só era impossível fritar ovos debaixo daquela chuva como ele acreditava que a irmã nunca voltaria para comê-los.

Fico com muita, muita pena da aflição do menino. Dou uma de mediúnica e digo que estou vendo a irmã dele e que ela está bem. É engraçado, porque estou fingindo a mediunidade, por outro lado sei que estou dizendo a verdade para ele. O garoto me olha e se acalma. Eu ainda digo que a irmãzinha adora ele e ele responde que ama muito, muito ela. Aí ele larga a frigideira e concorda em entrar na casa. Fala para eu transmitir um beijo para a irmã. Eu faço que transmito e vou saindo dali dizendo: quando ela voltar, pergunte sobre o beijo, pergunte sobre o beijo. E apesar da minha mediunidade charlatã, acredito que a menina recebeu o beijo.

Me vem uma leve dúvida: e se eu estiver errada e ela morrer? Mas eu rebato a dúvida. Saio do quintal da casa com extrema dificuldade por causa da chuva e também por que de repente eu fiquei trôpega. Tenho que andar devagar até coisas nas quais eu possa me segurar para conseguir ir. Mesmo assim não me sinto mal. Penso: vai demorar um pouco mas voltarei ao refeitório. O homem negro está a minha espera ali adiante.

{13 de julho de 2003}

IMAGE CREDITS STEVE KLEIN | W MAGAZINE MARCH 2014

OS CETSERES

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