AS DUAS GRANDES CRUZES VÃO SE SOBREPOR NO CÉU

6
10min de leitura

Vou dar um crédito de que um sonho desses tem muito mais alcance do que eu sou capaz de enxergar no momento.

Estou no extrangeiro, nos EUA, acho.

Tem algo no sentido de que eu fui para lá, não como se estivesse sonhando que fui para lá, mas como se usasse o sonho para ir onde queria e onde queria era ir lá para ver a palestra do Leo King. Como nos sonhos em que eu resolvia encontrar Ele e simplesmente uso o sonho como se fosse uma nave que me levaria direto ao que desejo. Então no que decido ir ver o Leo King, sei onde ele está dando sua palestra, é nesse supermercado que parece muito uns que sonhei.

Entro no supermercado e estou consciente de que estou num modo de funcionamento que não gosto muito, mas que por muito tempo foi o único possível. Estou muito yang, me sentindo forte e confiante, mas sem feminilidade nenhuma, mesmo que esteja de minissaia. Passo a mão no meu cabelo e sinto como está oleoso.

– Ele está grizzy, penso.

Não sei se existe essa palavra em inglês para oleoso, mas no sonho quer dizer isso. Mas nada disso me abala pois estou convencida das minhas capacidades de um jeito meio gabola mas ao mesmo tempo autêntico. Na verdade poderia dizer que não tem nada de fundamentalmente ruim na minha atitude, apenas é muito yang.

No que passo pelos caixas vejo ali, atrás de umas separações dessas que tem em supermercado o Leo King e algumas das pessoas que chegaram para a palestra.

E aqui tem o lance da cor amarela.

A cor amarela me guiava pois os letreiros da palestra eram amarelos, o Leo King estava de amarelo e tinha mais coisas amarelas ali, como o cartaz do evento. Ou seja, apesar do supermercado ser muito grande, tipo um Carrefour, eu não precisava perguntar nem pensar muito, era só ir atrás do amarelo.

Dou a volta e passo por onde tem que entrar e vou ali até o grupinho do Leo King.

E aqui tem algo assim. Desde o início tenho uma sensação de que controlo o sonho. Já experimentei de sobra o quanto eu não controlo NADA nos sonhos, por mais que aparentemente possa, pois é um sonho, então o que acho é que esse sonho estava de acordo com minhas intenções, pois vai se desenrolando quase como se fosse uma fantasia minha. Então logo que chego ali, sei que meu papel é estimular o Leo King por que ele está desolado com o fato de quase ninguém ter vindo na palestra dele.

Estou no sonho com uma mente muito igual a que tenho acordada, pensando as mesmas coisas que penso quando vejo o Leo King e isso em parte é que dá essa sensação de que estou fantasiando.

É quase como se eu decidisse que a palestra estaria micada, ele estaria desanimado e meu papel seria tirá-lo disso.

Vejo ele ali incapaz de esconder o bode por estar rodeado de uma meia dúzia de pessoas. Nem está conseguindo ser simpático. Fico ali do lado. E então ele começa a dizer umas coisas no sentido de cancelar a palestra.

– Como assim, não vai ter? pergunto.

– Ah, é que eu tenho que ir para outro lugar, fazer outras coisas, ele diz, já meio virando o corpo na direção da saída.

Isso parece uma cena escrita por mim, pois esperava por isso e respondo como se fosse uma fala na qual tivesse pensado:

– Você quer desistir porquê só veio meia dúzia de gato pingado, né?

Essa frase é uma maneira meio crua de colocar as coisas, mas acho importante dar nome aos bois ali da situação e tocar a real, para tirá-lo daquela evasiva.

Ele pára, desconcertado.

Então digo:

– Olha só. Essa meia dúzia de gato pingado que está aqui são as pessoas mais corajosas, mais autênticas e mais inovadoras que você vai encontrar na sua vida inteira, porquê elas vieram escutar você por perceberem que você tem algo a dizer e não por ser modinha.

É mais ou menos essa a frase. Não uso a palavra modinha, mas o sentido é esse. O que digo com toda a convicção e sinceridade, mesmo que tenha preparado a frase com antecedência, pois sabia que precisaria dela, é que aquelas pessoas que estão ali tem algo a mais, pois percebem que um ninguém desconhecido como o Leo King possa ter algo importante a dizer.

Até prossigo dizendo mais ou menos:

– Mesmo você sendo um ninguém, um desconhecido, elas percebem que o que tem a dizer é valioso e vieram aqui.

Apesar de manter a cara de bode pois não consegue deixar de se desapontar com a falta de grandiosidade daquela platéia, o Leo King já mudou de idéia e se percebe que ele vai manter a palestra.

Ele não olha para mim. Sei que sou o tipo de pessoa que ele nem considera digno de atenção, pois não sou o que ele considera “edgy”.

Seu olhar vaga para lá e para cá como se escutasse um alto falante, mas fica claro que consegue perceber a razão nas minhas palavras.

– Quando você for famoso e tiver uma platéia de 300 mil, serão 300 mil imbecis. Essa platéia de meia dúzia não.

Ele já se convenceu e meio sem necessidade prossigo, até sentindo que exagero um pouco:

– No futuro você vai olhar para trás e perceber que essa foi a melhor platéia que você teve na vida.

A coisa já se encaminhou e Leo King nos conduz para o local da palestra que é um canto ali no supermercado.

Ele se senta na frente e nós de frente para ele, todos no chão.

Tem muito amarelo na cena, acho que esse canto tem uma parede amarela.

Ele ainda está visivelmente de mau humor, mas começa a falar. Diz alguma coisa que não lembro e na segunda frase sua má vontade é tanta que ele tem preguiça de falar e pede para sua assistente dizer o que ele iria dizer. Ou mais ou menos isso, já que ele fala também. Só sei que ele passa meio que a bola para sua assistente, uma menina de uns 10 anos que por sua vez está animada e não tem o ar de desânimo do Leo King. Ao seu sinal ela sobe sobe sobre suas costas, pois ele está deitado no chão de bruços e ajuda ele a dizer o que ele está dizendo, não como se ele precisasse de ajuda, mas como se estivesse de bode mesmo e não quisesse se esforçar muito. Essa dinâmica na prática funciona como se ele estivesse se dispondo a dizer a frase mas encarregasse a assistente de fazer os gestos, pois o que ele tinha a dizer exigia o acompanhamento de grandes gestos para ficar claro e seria o seguinte:

– As duas grandes cruzes vão se sobrepor no céu.

Assim como nos vídeos ele faz aqueles traços sobre o mapa astral, a função da garota era gesticular mas os gestos dela criavam como que a imagem das duas cruzes se sobrepondo.

Era como que cruzes formadas por uma estrelinha em cada ponta e mais uma na intersecção.

Eu e o resto da diminuta platéia ficavamos escutando com atenção. Aliás cabe dizer que em momento algum ninguém se mostra ressentido ou ofendido pela clara má vontade do Leo King com a gente.

Nisso ele prossegue:

– O North Node vai coincidir com o South Node.

Acho aquilo digno de uma pergunta. Estou com um lápis na mão, um lápis com revestimento amarelo. Uso o lápis para mostrar o que quero dizer quando pergunto a ele:

– Ué, mas o North Node e o South Node não são pontos imaginários, sempre opostos?

E mostro cada ponta do lápis.

– Não, responde Leo King.

Fico confusa mas pelo jeito eu estava mal informada.

E acho que é nesse ponto que o foco deixa de ser o Leo King.

Meio que olhando ao redor enquanto assimilo essa informação, que me impressiona mas não faço idéia do que representa na prática, olho para trás e reparo num sujeito. Há um homem sentado ali nesse canto, encostado na parede. Não sei dizer se eu o olho e ele me vê e começa a me chamar ou se eu o olho justamente pelo fato de que ele começa a me chamar pelo nome com grande alegria.

Isso é o que fica mais forte, o quanto ele está sinceramente feliz de me ver.

– Silvia, Silvia, ele diz.

Olho para ele e o reconheço, apesar de que não é um reconhecimento físico.

Sei que ele é aquele rapaz que fez FAU comigo e que foi falar comigo na sala e elogiou meus desenhos de figurino e depois elogiou meu cabelo e disse que eu era bonita.

Claramente estava interessado em mim, mas eu achei ele muito esquisito e não dei bola.

Ele, na vida real, tinha um tipo meio...sei lá, mexicano? Tinha uma pele meio azeitonada e um cabelo meio careca e um jeito meio afeminado, para dizer a verdade. Mas foi muito legal comigo, isso não posso negar.

Aqui no sonho era ele, mas no corpo de outro.

Não como se fosse ele mais velho. Era outro homem bem mais velho que não parecia com ele e, é isso que me confunde, não trazia melhoria nenhuma na questão da aparência do original.

Era um homem de uns 60 anos, feio, com ar envelhecido, apesar de que, assim como o cara da FAU, claramente uma pessoa legal e boa e amorosa comigo.

E aqui tenho uma reação sobre a qual me ocorre um comentário que acho válido colocar, pois escrevi até aqui evitando comentários que com certeza daqui a um tempo vou perceber que eram mais longe da verdade o possível.

Mas o que me dou conta agora escrevendo é que no que olho para esse homem que me chama com tanta alegria há um paralelo entre o que o Leo King sentiu em relação a aquela platéia miada e o que eu sinto por esse homem.

Pois nada nele contribui visualmente.

Ele é um cara que já me incomodava um pouco visualmente quando era o rapaz da FAU e agora me surge pior ainda nesse sentido, pois está claramente um senhor idoso, mesmo que não muito, nada caquético, mas atração física zero.

Tem uma cara destituída de cabelos, com rugas e uma pele branca.

Acredito que a mesma coisa que o Leo King sentiu ao dar de cara com os 6 malucos totalmente com jeito de losers que compareceram na palestra dele, a qual com certeza ele esperava que fosse algo altamente cool e descolado e grandioso, é o que sinto quando olho para esse homem, mas...

Mas.

Aí é que está.

Sou outra pessoa agora. Como se no sonho tivesse consciência do quanto evolui nesse sentido.

Porquê me tornei alguém que é, como aconselhei ao Leo King, capaz de enxergar além das aparências, ou melhor dizendo, pois às vezes as aparências revelam sim algo que não deve ser ignorado e descartado, alguém capaz de ver além das próprias expectativas egóicas.

Alguém que percebe que o carinho e alegria genuínas com que aquele homem me olha valem sim muito mais do que minha frustração com a falta de atributos físicos nele.

Nem estou dizendo que estava vendo ele como namorado, nada disso.

Mas o teria descartado por ser alguém que me pareceria “irrelevante”, apenas pela falta de impacto visual.

Como fiz com o rapaz da FAU, que com certeza era um cara legal.

Mas no sonho sou capaz de evitar essa besteira.

Sorrio de volta sem frieza nenhuma.

Ele me diz:

– Posso sentar com você?

– Sim, respondo.

Ele bate no chão ao lado dele.

– Vem aqui.

Eu olho bem.

A parede é meio desconfortável, não está muito limpa, aquele chão muito menos. Noto duas teias de aranha ali nos cantos bem empoeiradas. A falta de atrativos físicos do cara era certo relevar, mas aquelas teias de aranha não.

Penso bem antes de responder:

– Aí tá sujo, tem duas teias de aranha.

Meu tom é sincero e ele percebe que não estou desfazendo dele, é que a parede está suja mesmo. Então se ergue e vem na minha direção. Estou sentada numa arquibancadinha de madeira. No começo da palestra estava no chão, mas na hora que o homem se levanta e vem, me vejo nessa arquibancadinha. E ao meu lado direito tinha deixado meu casaco do Dolce e Gabanna. Eu tinha um casaco dessa marca bem no estilo cheio de bordados e pedrarias deles. O homem se senta sobre meu casaco. Esse ato foi muito interessante pois mesmo que no primeiro instante eu tenha uma impressão de que ele vai estragar meu casaco, logo em seguida sinto como se fosse um ato de consideração deixar ele sentar sobre meu casaco, como quando uma visita vai na nossa casa e recebe a melhor poltrona. Ele me olha sorrindo .Nem procura disfarçar o quanto gosta de mim. E então há, diante do lugar deles, meu par de sandálias havaianas, que também havia tirado e juntamente com o casaco, colocado ao meu lado. Ele olha as sandálias e com grande carinho, como se por sua vez aquele gesto deixasse claro o quanto estava feliz de me ver, calça as sandálias. No sonho o gesto tem claramente esse significado. Reparo que os pés dele tem aquelas manchas vermelhas típicas de idade avançada, mas muito mais avançada do que a idade dele em si.

E acaba.

{9 de novembro de 2017}

IMAGE CREDITS ERWIN OLAF

AS DUAS GRANDES CRUZES VÃO SE SOBREPOR NO CÉU

Comentar
Facebook
WhatsApp
LinkedIn
Twitter
Copiar URL

Tags

amarelo asduasgrandescruzesvãosesobrepornocéu cruzes LeoKing meunomesendodito sendochamada Silvia supermercado

Quem viu também curtiu

A OUTRA SILVIA

HERZEL É O DONO DO CENTRO DE ARTES

O COLÉGIO NO CAMINHO