Estou num lugar que parece demais o Bar das Empanadas, na Vila Madalena, sentada numa mesinha meio na calçada, com meu amigo. É dia e o bar está cheio. Converso com meu amigo animadamente e pelo menos da minha parte, tem um clima de flerte, que ali, por alguns momentos, até parece que está dando certo e que ele gosta de mim. Peço um litro de leite para levar para casa, o garçon traz, coloca na mesa. Eu e meu amigo continuamos conversando alguns instantes, naquele clima que ia ficando cada vez melhor, e então, ele, ao terminar uma frase, simplesmente levanta da mesa e vai embora. Não que tenha me largado ali, mas como se tivesse sido uma despedida super rápida, ele termina de falar, diz tchau, e já vai embora, e no minuto seguinte eu o vejo abraçado com a namorada, indo pela rua, se afastando. Aquilo me surpreende, pela mudança tão brusca de num momento ele estar falando comigo como se me adorasse e no instante seguinte, já estar colado na namorada. E aquilo me dói, claro . Era como se ele estivesse falando com um amigo homem dele. E aquela imagem dos dois se afastando, tão juntinhos, tão felizes e eu ficando para trás sozinha na mesa, nem sei dizer o quanto dói. Não tive o mínimo de maus pensamentos, não desejei mal a ele, até achei bonitinho a felicidade deles. Fiquei triste por mim mesma, que nunca consigo, nunca consigo. O bar está com um bom movimento, tenho que esperar um tanto para conseguir chamar a atenção de uma das garçonetes e pedir a conta. Antes que consiga, fico meio preocupada em como vou pronunciar as palavras ou me comunicar com ela. Não sei porque, é como se houvesse uma barreira que eu tivesse que ultrapassar para isso, não sei se de timidez ou da própria tristeza onde estava afundada, mas é algo que não sei com certeza se vou conseguir ultrapassar e falar com a garçonete e até fico surpresa quando falo, fazendo o gesto de conta, é como se não me julgasse capaz disso. O dono do bar, que também fica meio servindo as mesas e no caixa, vem me trazer a conta e quando me olha, seu olhar acende um pouquinho, como se tivesse me achado atraente. Levanto da mesa e vou até o caixa, pagar, que é um balcão, o mesmo onde servem coisas, perto da porta da cozinha. O dono do bar realmente parece ter me achado atraente, porque conversa comigo com aquele ar meio aceso que os homens ficam quando acham uma mulher bonita mas isso, como sempre acontece comigo, não dura mais que algumas frases. Na segunda ou terceira frase, ele já retorna a um tom meio apagado. Penso com tristeza que não sei o que tenho, parece que às vezes passo aos homens a ilusão de ser atraente, mas e é só falarem comigo para mudarem de idéia. O homem já começou a ser só “ simpático” comigo. Então ele pergunta se eu não queria experimentar um tal remédio de ervas, que dá na pessoa a sensação de estar satisfeita. Você toma aquilo, e imediatamente fica satisfeito com tudo. Começa animadamente a me descrever os sintomas. Conta que costuma chegar em casa, depois de um dia duro de trabalho, e tomar aquilo. E começa primeiro a sentir um adormecimento nos pés, um comichão. Não sei se ele fala adormecimento ou comichão, acho que fala as duas coisas. No momento em que descreve isso, ele se interessa muito pelo que está dizendo, e eu me interesso muito em ouvir. Vejo o rosto dele se movimentando enquanto me descreve os efeitos colaterais do negócio, um rosto rude, áspero, embrutecido pela fumaça da cozinha, mas forte, feliz e radiante. Esses sintomas físicos são só efeitos colaterais. O importante é a tal satisfação que o remédio causa. E não é bem um remédio. Acho que no sonho, ele chama de “ produto” ou algo nesse gênero, não algo que tenha a conotação de remédio. Eu falo que aceito experimentar e ele entra todo feliz na cozinha para pegar para mim. Não está vendendo nem nada, é uma coisa de simpatia dele mesmo, ter me oferecido. Penso vagamente se aquilo seria uma droga. Mas concluo que, se fosse um tóxico, ele não ficaria falando e oferecendo tão abertamente no balcão do estabelecimento dele, para uma desconhecida. Ele traz para mim algo que parece um rolo de papel alumínio, e na verdade é mesmo um rolo de papel alumínio, mas dentro tem o produto. Eu agradeço e vou embora. Ando pela calçada num passo rápido e decidido, a mesma calçada que instantes antes, meu amigo cruzou com a namorada. Está tudo deserto, iluminado pela claridade do meio do dia. Mas parece feriado, parece que as pessoas estão todas em outro lugar. Quando meu amigo cruzou esse vazio todo, tinha a companhia e o calor da namorada com ele. Eu não tenho nada, só a mim mesma. Quando já percorri vários quarteirões, percebo que deixei o litro de leite no bar. Mas acho que não vale a pena voltar para pegá-lo, ainda mais porque o tal produto da satisfação, na forma de um rolo de papel alumínio, está na minha sacola, sendo bem complicado de carregar, com aquele formato comprido demais. E sem parar de andar, começo a duvidar que tenha vindo pelo melhor caminho. Às vezes me acontece de, quando saio de um lugar, como me sinto observada, pego a primeira direção que me vem e me afasto toda decidida, mas na verdade nem sei se aquele é o melhor caminho. Agora é a mesma coisa, começo a raciocinar, pensando se aquele será o melhor caminho ou se eu tivesse ido pelo lado oposto não estaria seria a direção mais curta para fora dali. Não consigo chegar a uma conclusão. Estou andando em direção a uma esquina, onde termina a rua por onde vou, então serei obrigada a virar de qualquer jeito. O vazio do lugar continua a me impressionar. Me aproximo da tal esquina e vejo que ela vira numa subida, não muito forte. Vindo em sentido contrário a mim, passando pela grande esquina, que inclusive se abre num posto de gasolina ou algo assim, não há construções nessa esquina, só um espaço aberto. Mas vindo na direção contrária, e passando pela esquina, está um moço, de cerca de trinta anos, de ar meio afeminado, de um tipo bem específico de moços de ar afeminado: magros, usando umas calças de flanela meio baggy, em estampa xadrez, com ar de intelectual, uma barbicha e cabelo bem rente. É um tipo que me dá um pouco de aflição. Então cruzo com ele o mais rápido possível evitando qualquer contato, e mesmo assim não conseguindo deixar de me soliedariezar pela imensa solidão que irradia dele, dois solitários percorrendo um caminho vazio. Virei a esquina, e tenho de novo diante de mim um subida vazia. É aquela subida de trás do Masp, que cai na Paulista. Vejo o Masp e a Paulista lá adiante. Ao mesmo tempo que penso que estava certa, esse não era o caminho mais curto, penso também que pelo menos é um caminho que me levou até onde queria, perto de um lugar conhecido, de onde posso ir para casa. Vejo aquela subida diante de mim, e me ocorre que mesmo não tendo poupado muito minhas forças, estou me sentindo forte e disposta e aquela subida não será nada demais. Então vou.
{7 de maio de 2008}
IMAGE CREDITS PIERLUIGI MARCO | VLADA ROSLYAKOVA | VOGUE CHINE JANUARY 2007