A PESTE

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Começava uma parte longa e degastante que acontecia de noite, na qual estava com alguns amigos, e tinha uns catorze anos (fico com essa idade o tempo todo).

Ainda de noite, estávamos em volta de uma máquina de vidro, iluminada por dentro, que não lembra nada que exista (a não ser um forno de microondas gigante), vendo peças da máquina se movimentar atrás do vidro. Tínhamos que fazer isso por que precisavamos cumprir uma tarefa: preencher umas fichas sobre o que estávamos vendo.

A coisa estava sendo feita em clima de brincadeira, mas mesmo assim era uma tarefa.

Eu estava me sentindo isolada. O grupo era liderado pela Bianca e uma amiga indistinta dela. Só que elas eram burras demais para fazer a tarefa, mas não percebiam isso. A Bianca ficava mandando os outros fazerem coisas que eu via que eram idiotas.

Daquele jeito não ia ser possível cumprir a tarefa nunca e não estaríamos livres para voltar para casa. Então eu começo a fazer tudo meio sozinha ali, contrariando as ordens dela.

Existe uma badeja giratória na máquina com uns disquinhos cheios de números que fica passando e temos que preencher uma das fichas com esses números. Só que eles passam rápido demais.

Preciso que os outros me ajudem a prestar atenção. Tento coordenar a equipe. Digo para cada um prestar atenção em um dos disquinhos. Mas a Bianca interfere, me ridiculariza para os outros dizendo que eu era complicada demais, tira a ficha das minhas mãos e começa a dar ordens idiotas. Eles acreditam mais nela do que em mim. Desisto e fico esperando. Estou brava e sentida.

Depois disso saímos de lá e estamos dentro de um carro para voltar para casa, quando saem todos de dentro do carro para salvar um gato que tinha caido do viaduto de ser atropelado.

Eles já tinham salvo uma meia dúzia de gatos naquela noite. Eu penso: –Nossa, eles vão salvar outro gato? E depois penso triste comigo mesma que provavelmente eles é que eram as pessoas boas, porque salvavam gatos e eu era a má.

Estou no banco de trás esperando quando noto que tem uma moça de uns vinte anos meio desmaiada ao meu lado. Sei que ela está meio doente e talvez morra. Na lapela do casaco dela tem uma flor. Imediatamente me lembro que sonhei com aquilo. Começo a contar o sonho para a moça desacordada. Falo que sonhei com uma moça prostrada daquele jeito, com uma flor lindíssima e muito fresca e viva na lapela. A moça que está no carro acha que a flor é feia.

Repito que não, que a flor era bonita e saudável e era a flor que fazia a comunicação da moça com as outras pessoas e as outras pessoas achavam a flor bonita também.

Mas estou tão perturbada de tristeza com aquela cena que não aguento contar o sonho até o fim e saio do carro.

Chegamos finalmente em casa.

É uma mansão. Sou muito, muito rica. Moro lá com minha família. A Bianca e a amiga indistinta dela vieram junto e imediatamente começam a circular pela casa como se fosse delas.

Desconfio que a Bianca continua a me ridicularizar e tentar me fazer parecer idiota para os meus amigos, mas de um jeito dissimulado, então eu nunca tenho certeza. Fico andando à toa de lá para cá de pijama, como se fosse uma enjeitada e não a dona da casa. Vejo que a Bianca está na cozinha lavando louça com a tal amiga e resolvo chegar e ouvir a conversa e checar se ela está ou não falando mal de mim. Ouço uns trechos. Ela está falando que teve que tomar as rédeas da situação porque eu estava atrapalhando tudo com minha insistência ridícula de tentar ler o que estava escrito nos disquinhos.

Fico me sentindo profundamente agredida. Me esgueiro de novo para dentro da casa para ela não perceber que eu ouvi. No momento seguinte estou na mesa da copa com minha família e meus amigos. Eu estou completamente a parte da conversa. Minha mãe fala com meus amigos: –Então, eu ouvi o sonho que contaram.

Vira-se para mim e diz: aliás, queria agradecer por aquilo que você falou da flor, mas você estava enganada.

Percebo que a moça desacordada no carro era minha mãe, e eu tinha sonhado com uma coisa que tinha acontecido com ela.

Minha mãe está contando o que aconteceu para meus amigos. É uma história triste, sobre a época da vida dela em que ela se decidiu se divorciar do meu pai, foi repudiada pela família dela inteira e obrigada a usar aquela flor na lapela como símbolo vergonhoso da divorciada e acabou voltando atrás e não se divorciando.

Estou sentida demais com ela também, por quem também me sinto traída, para pedir ajuda ou falar qualquer coisa. Levanto da mesa e me afasto.

Vou andando pela casa e resolvo escovar os dentes, mas quando estou com a boca cheia de pasta, não encontro pia para cuspir, porque todas estão sendo usadas por uma multidão de desconhecidos que está na casa. Fico procurando uma pia enquanto penso que bem que podia mandar alguém desocupar uma pia, já que eu sou que sou a dona da casa. Mas não faço isso.

Acabo cuspindo numa pia usada meio nojenta. Decido que vou sair dali. Surgiram umas casas tipo uns alojamentos, dentro da mansão. Perto desses alojamentos há uma senhora idosa muito aflita com uma mulher ao lado, olhando para a estrada de terra em frente. Sei que a senhora está esperando um carro para levá-la a cidade vizinha, onde ela tem que resolver um grave problema. Decido levá-la e aproveitar para ir embora dali. Mas antes preciso saber se não é perigoso demais. Vou até a senhora, seguro sua mão e pergunto: –Há perigo? Há perigo?

A senhora reponde que sim. Pergunto: –Mas que tipo de perigo? Tiros? Sangue?

Nesse momento chega o carro que a senhora estava esperando. Corro até ele. Ele parece um coche aberto, e uma família está lá dentro. Essa família é uma coisa impressionante. Parece uma versão doente da Família Santa. Vários membros estão gravemente doentes, com o corpo coberto de chagas purulentas, e no meio deles, como um menino Jesus, está um garoto de uns seis anos, coberto de chagas, sem um olho. O menino estende a mão para mim. Tenho pena dele e seguro sua mão. Pergunto para o pai do menino: –Há perigo?

Ele responde que sim. – Que perigo, que perigo, eu pergunto. Tiros?

O pai fala, meio achando graça: –Você acaba de se contaminar. O perigo é este.

Vejo que encostei o dedo indicador da mão direita na ferida do irmão mais velho do outro. O carro vai embora. Tudo fica claro. Aquela multidão na casa era de pessoas fugindo da Peste , que já tinha dizimado a cidade vizinha. E agora eu estava contaminada e a morte era certa, mas isso não era o pior: ia ficar coberta de chagas, perder minha beleza, perder meus olhos.

Sou tomada de um terror absoluto, como nunca tinha sentido antes. Saio urrando pela casa, chamando minha mãe. Encontro ela e meu pai. Digo que fui contaminada e imploro ajuda dela. Digo que quero morrer agora, para não passar por aquilo. Meu pai fica repetindo: –Nada disso, vai passar sim.

Berro: –Não é você quem decide!

Ele repete do mesmo jeito mecânico: –Sou sim.

Dou um tapa violento no rosto dele e grito: –Não é não! Sou eu quem decide, eu!!!

O rosto dele incha e nele aparecem umas letrinhas, parece página de um livro. Levo minha mãe para longe dali. Vou implorando desesperadamente: –Me ajuda a morrer, eu quero morrer agora, me ajuda, me ajuda, me ajuda.

Chegamos numa espécie de ambulatório. Ela diz:– O antibiótico vai doer tanto... Eu digo: – Eu não me importo, mas eu quero morrer agora, me ajuda, mamãe, por favor, por favor, por favor.

{14 de Setembro de 2003}

IMAGE CREDITS PAUL KOUDONARIS | HEAVENLY BODIES | THAMES AND HUDSON

 

 

 

A PESTE

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