ROBÔS NÃO GOSTAM DE HISTÓRIAS

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Volto a mim algumas décadas no futuro. Não fica claro o que teria se passado comigo. Algo como um coma. Mas estaria tipo uns 20-30 anos no futuro apenas. Talvez até menos. Muito vagamente havia um homem comigo, que entrou ou não nesse estado comático e ainda estaria vivo, ou seja, não seriam mais que duas ou três décadas. Mas volto a mim ali sozinha nesse lugar que me trouxe de volta ou que pelo menos cuidou de mim enquanto estive desacordada.

Desacordada.

As coisas são mais ou menos como são agora, eu nem notaria diferença. No que ocorreu uma drástica diferença seria na população. O lugar, o planeta, pois não fica algo localizado geograficamente em nenhum país específico, havia passado pouco a pouco a ser dominado pelos robôs. Robôs exatamente como pessoas, Só não é Blade Runner porquê todo o entorno está como que o mesmo, e em Blade Runner os robôs não chegavam a estar no comando e aqui estavam. Toda a sociedade era quase que exatamente como é agora, só que a população era de robôs e que, sem que nada de dramático tipo extinção em massa ou campos de extermínio tivesse ocorrido, havia-se reduzido quase que a zero a reprodução humana.

A primeira coisa que ficava então em destaque nesse ‘mundo do futuro” é que a população total havia sido reduzida a uma pequena fração da atual, nem saberia dizer qual, mas esse lugar, esse centro meio que científico no qual me encontro teria ali no máximo umas 8 pessoas tomando conta. Algo que no “mundo atual” estaria com um grupo de 300, 400 pessoas transitando. Essa proporção.

E além dessa enorme diminuição na população total, o número de humanos então, beirava o zero. Tanto que acordo e rapidamente, quase que sem que ninguém precise me explicar, pois como disse, havia sido um intervalo não muito grande e o que eu encontrava ali quase que era uma decorrência natural do que estava quando havia perdido a consciência, entendo tudo.

Olho ao redor e percebo, bem, são todos robôs, quase não sobraram humanos. É fácil perceber que são robôs pois ao contrário do Blade Runner, os robôs nem de longe tentavam passar por humanos, muito pelo contrário. De uma maneira que não chegava a ser agressiva como em 1984 ou outras distopias, as características “humanas” estavam meio que proibidas, assim como é proibido fumar em restaurante, algo desse nível.

Então essa equipe que está ali quando acordo me trata como “uma humana”, ou seja, alguém de nível inferior, ninguém me trata mal nem me agride, mas claramente percebo e fica claro e mais uma vez, nada que eu não esteja vendo acontecer agora mesmo, e então não chega a ser um choque, que foi colocada uma hierarquia na qual os humanos equivalem a animais, como se fossem o mais avançado dos animais, e que são colocados a serviço dos robôs em tarefas menores. Acho que não foi feito nenhum filme desse jeito.

No que me inteiro de tudo isso e vejo ao meu redor um ambiente frio, sem vida, sem graça, como exatamente esses robôs, minha primeira intenção é: será que de humana só tem eu aqui? Ainda com a camisola de hospital, vou dar uma volta ali pelas instalações. Ninguém tenta me deter nem nada, mas por outro lado minha vida, como se verá a seguir, está totalmente nas mãos dos robôs. Caminho na direção de uma espécie de saguão dividido ali dessa parte onde acordei por uma parede envidraçada e como previa, acho que vejo no máximo umas duas pessoas, claramente robôs.

Então ao lado esquerdo há uma sala para crianças, como nesses lugares públicos que tem salas para os funcionários deixarem suas crianças durante o expediente. Eu entro. A sala é talvez algo de uns 20 por 20 metros e dentro, um grupo de umas 25 crianças pequenas, não mais que 10 anos de idade, a maior parte com 3, 4, 5. Há uma equipe de uns 4 adultos tomando conta mas as crianças mais brincam entre si.

Então resolvo fazer um teste. Sei que crianças robôs não gostam de histórias. Sento no meio de um grupinho e começo a contar uma história.

– Era uma vez um pobre bebê abandonado.

Imediatamente todas as crianças se levantam e se afastam. Apenas um menininho fica ali sentado me olhando com aquela expressão que crianças tem quando estão escutando histórias. Eu sigo, inventando na hora.

– Esse pobre bebê abandonado sobrevivia comendo restos de comida de lata, pois estava na floresta num lugar onde as pessoas jogavam lixo. Um belo dia, ele encontrou no lixo um folheto com a foto de um castelo. Um lindo, lindo castelo com torres altas e pontudas. O pobre bebê abandonado nunca tinha visto um castelo, não sabia o que era um castelo mas sentiu imediatamente que aquele castelo era seu. E resolveu ir até ele.

Nisso, percebo que o olhar de interesse do menininho na minha frente começa a perder a intensidade. Ele fala alguma coisa, se levanta e como os outros se afasta e ainda por cima fala com os adultos ali presentes:

– Olha, ela está contando uma história.

Contar histórias tinha virado uma infração. Nada é grave do nível serei presa, mas me levanto e saio. O clima todo é amorfo e silencioso, mas não um silêncio cheio de vida, um silêncio morto. Minha impressão estava correta. Quase que não haviam restado humanos.

Volto ali para onde estava, com a equipe e aqui tem uma sequência que embolou um pouco. Tem um lance com um homem. Havia um homem comigo. E teria ali um homem, um homem humano chamado Júlio. A equipe de robôs encarrega um pequeno grupo formado por ele, eu e umas duas outras mulheres não sei se humanas de ficar tomando conta de sei lá o quê ali nessa sala durante uma espécie de evento que traria mais pessoas ali para o local. Nesse tipo de coisa é que se revela o domínio robô. Não é um pedido. É um comando. A robô mulher, que acho que está de jaleco branco, passa as seguintes regras:

– É proibido dançar e até mesmo mexer o corpo sem necessidade. Só o Júlio tem permissão para correr pelo local pois ele tem que proteger o dinheiro.

Ou seja, esse pequeno grupo era todo de humanos, pois robôs não dançam. Tinha algo mais no sentido de não expressar emoções fortes, etc. Ou seja, nós, os humanos, é que tinhamos que nos forçar e nos limitar a tentar passar por robôs. Eu não estou revoltada nem nada. Estou indo. É um mundo sem vida no qual não tem nada que me interesse mas naquele instante estou sem tomar nenhuma decisão a respeito. Então tem isso do Júlio que é entrecortado com uma mulher, acho, isso é embolado mesmo. Havia uma mulher de quem eu gostava quase como se fosse minha namorada e mesmo assim isso não seria uma história de relacionamento gay. Mas havia ali uma mulher que eu desejava que ficasse comigo mas ela cede. Ela cede à pressão de escolher o universo-robô. Eu a vejo se afastando com um robô que se colocou de seu namorado. As coisas estão tão distorcidas que isso nem tem tom de “ela cedeu”. Fica mais como se eu estivesse tentando trazer ela para uma situação ruim e novamente, apesar de ser uma dupla de mulheres, não seria uma relação homo e ela fica como que se tivesse “resistido” e escolhido o melhor, que seria integrar o mundo robotizado.

No que se afasta de braço dado com seu novo parceiro robô, ela olha para trás, para mim, e me lança um olhar tomado do mais fundo ressentimento, como se eu tivesse tentando ferrar com ela. Isso se mistura com essa coisa desse Júlio, por quem tenho isso sim uma forte atração, mas logo fica claro que ele também não irá me escolher.

Então estou nesse tal evento, ali de lado como uma serviçal, que é exatamente o que sou, e logo atrás de mim estão duas moças acho que robôs, pois estão participando do evento, com roupas de alta costura com franjas de boá. Curiosamente estão deitadas no chão.

Não sei se isso tem algum sentido, mas o que me faz olhar mais fixo para os vestidos, principalmente de uma delas que parece a Priscila Cavalcanti da minha infância, é o fato de que aquilo estava sendo apresentado e usado nos vestidos como se fosse uma franja de plumagem, que no sonho eu chamo de boá, mas seria esse franjado de pena de avestruz chiquérrimo e super glamouroso, na real era algo meio de folhagem dura. Algo meio complicado de explicar. Mas por estar ali na barra de um vestido de alta costura e ter o formato meio parecido com as delicadas e macias plumas de avestruz, a intenção era de que aquilo fosse considerado pluma de avestruz, mas na realidade era uma coisa acho que de folha, dura, pontuda e seca.

Uma metáfora perfeita daquele universo robô todo, que de bom não tinha nada, e era duro, pontudo e seco,

A moça robô percebe meu olhar fixo e aquilo é considerado uma quebra de protocolo, já que eu sou um ser de hierarquia mais abaixo.

– O que foi, está achando interessante? pergunta a “Priscila”, com uma clara maldade no olhar.

O tom era de “que foi, nunca viu?”” Dou a volta rapidamente.

– Muito lindo esse seu vestido de boá.

Ela se desarma com o elogio. Começa a mostrar em detalhes que tinha mais uma franja ali em cima. Essa segunda franja que acompanhava o decote tomara que caia pelo menos era mais pena de avestruz de verdade. Eu pergunto onde ela comprou ou penso em perguntar. Na verdade estou me interessando por um vestido que nunca poderia adquirir, pois humanos não podiam comprar coisas.

Então a amiga dessa “Priscila”, que parecia um mero desdobramento dela, me mostra uns adereços que teria por sua vez no seu próprio vestido. Estão ambas animadas com meu entusiasmo quase que sincero pois os vestidos eram quase bonitos. Então eu vejo os adereços, que parecem uns bandaids com relevos grudados no vestido, e digo:

–Ah, mas isso tem cara de humano.

As moças concordam, rindo. Sinto uma pontada de tristeza quando digo isso. Uma vez li um relato de uma mulher que entraram no apartamento dela e eram mulheres bandidas e começaram a roubar as roupas dela e a dona do apartamento, numa clara manobra para gerar um pouco de empatia e assim evitar coisa pior, se pôs a oferecer os vestidos para as ladronas, incentivando elas a provarem, olha esse, olha esse que lindo, nossa, ficou muito bem em você. Se for pensar foi uma atitude esperta, mas aqui no sonho é meio triste. Curiosamente o sonho não chega a dar nenhum tom sobre essa minha absoluta passividade. Apenas nesse momento sinto tristeza, pois de certa forma estou me voltando contra mim mesma para tentar garantir minha segurança.

Em seguida estou no táxi, uma tarefa também designada pela tal mulher robô que parecia ser quase que a minha “proprietária”. Devo ir com ela e sua filha como criada. Eu me sento no extremo esquerdo do assento, com a filha, que deve ter uns 20 anos, ao meu lado direito e no extremo direito do assento a mulher robô. A filha é robô também.

É noite, o táxi está escuro e a filha, meio por sono, meio por carência, coloca sua cabeça no meu ombro direito e fecha os olhos. Eu deixo e até gosto. Nesse momento fica mais claro o que eu realmente sinto e que estaria motivando minhas reações. Apesar de eu ser tecnicamente escrava e estar mesmo na dependência absoluta dos robôs, não me sinto assim. Aquele momento da brincadeira sobre “isso tem cara de humano”, estava meio com medo mesmo e exagerei, mas no geral não estou com medo e … tem algo. A falta de vida daquele novo mundo quase que me coloca na situação de que não tinha mais nada que eu desejasse ou pudesse fazer.

Quase não existiam mais humanos. O Homem Vago que era uma espécie de par romântico comigo não estava lá. A moça minha amiga que eu queria que ficasse comigo também. O Júlio não iria me escolher. Então meio que tanto fazia ser escrava ou não. E não chegava a ter um sentimento trágico nisso.

Mas então, na escuridão do assento do táxi, a Mãe Robô cutuca a filha com dureza e diz:

– Sente-se direito. Estique as pernas.

A filha retira a cabeça do meu ombro e se senta ereta esticando as pernas para frente e reparo numa rede de veias minúsculas na parte da frente das duas pernas dela, do joelho para baixo. Ela está descalça. A filha tinha vindo buscar calor humano em mim, pois da mãe claramente não receberia isso nunca.

– Até os robôs são forçados a serem robôs, eu penso.

{4 de novembro de 2023}

IMAGE CREDITS STEVE KLEIN | VOGUE ITALY 2003

ROBÔS NÃO GOSTAM DE HISTÓRIAS

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