O GRANDE AMOR DO PASSADO

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O sonho mais importante que tive ultimamente foi aquele que aparecia minha coluna vista de frente e a vértebra torta sobre o coração.

Sei que esses desvios no corpo tem emoções presas nele e pedi para ver qual seria, já que é uma coisa tão encravada lá dentro, que já apareceu em vários sonhos meus inclusive nO Botão que não abria.

Aí tive esse sonho chato, repetitivo, batido, mas super intenso.

Vejamos.

Idade média. Tipo Henrique XVIII, então acho que um pouco depois. O grande amor da minha vida morreu num trágico acidente. Ele era casado com outra pessoa, mas parecia me corresponder e antes que tivessemos tempo de resolver a situação, ele morreu.

Fiquei tão arrasada que minha dor conseguiu fazer com que a história rebobinasse e eu voltasse no tempo para tentar impedir essa morte.

Então estamos todos ali, revivendo a cena onde ele deveria despencar não sei de onde, acho que de um trem e morrer.

Depois que aconteceu, ninguém soube explicar direito como ocorreu o acidente, então não sei muito como me proteger, ou melhor, proteger ele.

A solução que me ocorre, então e que acho ótima, é abraçá-lo por trás o tempo todo.

Fico enganchada nele. Isso parece perfeito, não há como ele cair assim.

Porque a única coisa que se sabe é que ele caiu.

Ele anda de lá para cá, trabalhando, porque tudo se deu durante o trabalho, e eu enganchada nele.

Depois que o perdi, meu amor, que era contido por causa do fato dele ser casado, ficou explícito e eu digo coisas românticas, como por exemplo: quando te vi pela primeira vez...

Uma parte muito, mas muito remota de mim não está gostando disso. Ele não retribui à altura. Não me repele, mas não há sinal de que esteja apaixonado no mesmo nível que eu.

A única coisa positiva que penso é que quando desço uma escada, abraçada com ele por trás e cruzamos com uma fila enorme de pessoas na escada, eu não tenho vergonha de estar assim com ele, e penso que isso é sinal que o amo mesmo.

Então acontece. Estamos num outro lugar e a filha mongolóide da Dona Helena aperta a cara dele, que tinha subitamente se tornado um ser de 5 cm de altura e só esse apertão é o suficiente para espremer aquele pequeno cérebro como uma ameixa, e matá-lo. Dramaticamente peço à Dona Helena que o salve. É isso que me incomoda, mas muito tênue: me sinto dramática. Apesar da hisstória ser real.

Ele morre mesmo. Estou numa igreja meio louca de dor quando entra um grupo formado por um nobre da corte que me odiava e que tinha sido o causador de tudo, inclusive da morte desse meu grande amor. Ele está com soldados, que carregam ferros.

Por um instante tenho pavor de que ele me leve para ser torturada, a única coisa que não poderei suportar, a única coisa que me parece que poderia ser mais forte que aquele amor todo. Há uma espécie de coroinha do meu lado, alguém que recebe ordens desse padre dessa igreja, que é meu amigo e para quem pretendo pedir ajuda e proteção, porque a morte desse homem que eu amava é parte do plano desse nobre da corte para destruir a minha vida e estou com medo que ele agora faça algo diretamente contra mim, porisso que me passa pela cabeça a tortura.

O nobre pára com seus soldados diante do degraus de pedra da igreja onde estou sentada esperando o padre meu amigo terminar de rezar a missa para ir falar com ele e começa a me falar umas coisas sobre meu marido barbeiro.

Aquilo me parece sem sentido, começo a falar:

– Hã? Não sei do que está falando. Do que ele está falando? pergunto à menina coroinha.

Sei que estou parecendo uma doida e aquilo é sincero, porque nos momentos iniciais o que ele fala soa tão distante do que estou sentindo que não sei mesmo do que ele fala. Mas essa reação instintiva, mais o medo enorme de que aquilo seja o prelúdio de um mandado de prisão que me levará para as câmaras de tortura, me ocorre que me fazer de louca pode ser uma boa defesa.

O nobre, que me detesta, já está dando sinais de irritação com minha reação.

Mas eu não cedo à tentação de me fazer de louca, porque seria abaixo de mim.

Esse que é o motivo do ódio do nobre por mim, porque ele de nobre não tem nada, é um verme e eu é que tenho essa nobreza de caráter toda, mas por outro lado, sinto que ostento um pouco isso, com vaidade.

Se eu fosse presa e torturada, por exemplo, teria que me sacrificar por amor e disso não sei se seria capaz.

Mas ao mesmo tempo que não cedo a essa saída fácil de me fingir de louca, percebo do que o nobre fala: do meu primeiro marido, um barbeiro, que morreu. Isso foi antes de eu me apaixonar por esse outro. Nem lembro desse marido barbeiro, não significou nada.

Então digo, interrompendo o nobre, que continua falando um texto meio decorado:

– Ah, você está falando do meu primeiro marido!

Ele fica mais irritado ainda, porque eu quebro aquele clima severo que ele estava tentando impor.

Então fica claro as intenções dele: está tentando insinuar que eu matei meu primeiro marido. Ele pretende mesmo me levar para a prisão, apenas mais devagar do que eu pensava.

Ele dá uma ordem para a menina coroinha, que depois de escutar esse discurso dele todo, não sei o que deu, se rebelou contra o padre e a religião e responde bem petulante:

– Não trabalho mais aqui.

E se retira, desacatando o nobre.

Reparo que ela tem a parte de baixo dos olhos engruvinhada, o que revela seu mau caráter.

O nobre, sem ter mais nada a dizer, se retira também. Um dos seus soldados fica para trás e me estende a ponta da espada. Acho que ele vai me atacar e me encolho. É um pensamento até que razoável. Mas na ponta da espada há um naco de carne de porco, bem atraente. Fico na espera de que ele faça algo de ruim mas ele não faz, sua intenção era me oferecer comida mesmo. Mas eu fico tão na defensiva que recuso. Penso comigo mesma que fui boba. Era carne. Recusei carne, a coisa mais difícil de encontrar.

Depois que eles saem, descubro que o padre, meu único amigo, desapareceu. Saio então meio sem rumo, pensando vagamente em encontrar um outro religioso, que lembra um padre russo, também meu amigo, para pedir proteção. Pelo jeito todos meus amigos são religiosos.

Mas não consigo lembrar o nome dele. Então vou seguindo por uma espécie de vagão de trem, atravessando os vagões, estou meio uma mendiga e então vem a parte realmente interessante.

Quando chego no último vagão e existe uma fileira de pessoas sentadas sem corredorzinho no meio, reparo que essas pessoas estão vestidas com roupas atuais. Mesmo ali, naquele tempo do passado, entendo p que é isso, que estou vendo as pessoas do meu tempo vestidas com roupas do que seria um futuro muito distante. Eu entendo isso e entendo também que isso significa que vou morrer em breve, porque quando a gente vai morrer, começa, eu sei, a ver cenas do futuro.

Tudo isso são informações que me vem com clareza e as quais eu poderia reagir tranquilamente, mas fico dando uns gritos e agindo como se estivesse louca.

Estou meio viciada em fazer altos dramas por causa de tudo. O interessante é que essa minha reação seria o normal em qualquer outra pessoa ali, porque ficar vendo cenas do futuro é meio pirante mesmo, mas não é o natural em mim, porque eu tenho uma mentalidade muito mais avançada, então essa cena toda fica meio falsa em mim, porque no fundo sinto tudo friamente, não estou abalada.

Até fico aliviada sabendo que vou morrer. Então me aparece o tal nobre, dessa vez sozinho. Vejo bem o rosto dele, mas ele não lembra ninguém que conheça, apesar de ter esse tipo de rosto loiro e antipático desse ator do Lanterna Verde, ou o parecido do Drive.

Acho que porisso não gosto de loiros.

Nosso diálogo é assim. Ele chega e me fala mais umas coisas agressivas e eu, desesperada, mas nisso um pouco mais sincera do que estava na minha reação exagerada com as visões do futuro, digo:

– O que você quer de mim? Me diga? Você já me tirou tudo!

Ele permanece frio. Ele é frio.

– Sim, ele responde.

E olha para o lado, como se pensasse consigo mesmo:

– Estou conseguindo tudo que quero, diz ele.

Ele também não me parece feliz, nem realizado. Tenho a impressão que sua tragédia é justamente essa, conseguir tudo o que quer e isso não fazer diferença nenhuma, porque é óbvio que ele se sente inferior a mim em algo que não consegue identificar, porisso me odeia.

Fico perscrutando a expressão dele para ver sinais de que ele percebe que não está feliz mesmo assim, mas ele é estúpido demais para isso, é inconsciente do que sente.

Aqui há uma coisa de ordem das frases. Acho que o diálogo é assim:

– O que você quer de mim? Me diga? Você já me tirou tudo!

– Tá vendo? Essa sua atitude piora tudo.

O que ele quer dizer é que essa minha postura dramática, de vítima, piora tudo. O que me soa injusto, porque se tem uma coisa na qual estou sendo justificada e sincera, é nisso de que ele me tirou tudo. Tirou mesmo. Tirou minha riqueza, minha carreira, meu amor. Me transformou numa mendiga que não tem para onde ir.

Não dou razão a ele, mas percebo que é essa a causa da ligação doentia entre nós.

Ele me agride compulsivamente porque se irrita com o desespero em que fico.

Acho que é esse o ponto do sonho:

Se eu deixasse de reagir desse modo, romperia o elo entre nós.

Eu não consigo deixar de reagir desse modo, todo meu caráter, que no fundo está edificado em cima de uma ostentação meio vaidosa da minha nobreza de caráter, não só atrai ataques de vermes como esse nobre, invejosos do meu caráter nobre, como dentro desse caráter que eu ostento, se exige meio essas reações inflamadas de vítima de ataques baixos. Não estou conseguindo explicar direito, mas o ponto é que é tudo vaidade minha. Se eu não reagisse como uma vítima injustiçada, romperia o elo entre eu e esse nobre verme maldito, mas minha vaidade de ser tão nobre de caráter ficaria insatisfeita de perder essa oportunidade de expor essa nobreza toda de caráter de quem é atacada injustamente por um verme baixo e invejoso.

Tudo coisas sensatas e razoáveis, tudo coisas onde estou coberta de razão a não ser pelo ponto de que o que move tudo isso,é vaidade, nada mais que vaidade. Fiz na minha nobreza de caráter um objeto de vaidade e ela causou toda essa situação. Mesmo a morte daquele endeusado amor, não poderia ser diferente, se eu fosse feliz no amor, no que minha vaidade sairia lucrando? Mas ter uma história trágica que ainda por cima, foi motivada pelo ataque baixo de um verme invejoso do meu caráter, isso sim alimenta a vaidade.

E existe mais uma coisa. O que me liga a esse nobre verme invejoso é principalmente a ilusão dele sobre mim. Eu estou consciente de que ajo por vaidade, mesmo que não consiga evitar. Mas ele, mesmo sendo estúpido demais para ter consciência disso, está convencido de que eu sou mesmo a pessoa mais nobre de caráter do mundo, porisso me inveja. Ele me vê como minha vaidade deseja ser vista. Porisso não consigo abrir mão dele. Ninguém me admira mais que ele, que se sabe um verme baixo. Nele minha vaidade encontra o que busca: uma admiração absoluta.

Mas se eu realmente fosse nobre de verdade, a ponto de não ser por vaidade, eu não atrairia o ódio dele. O que atrai o ódio dele não é minha nobreza de caráter, até certo ponto bem real, mas a vaidade que tenho sobre ela, que até a invalida.

Essa vaidade, essa ostentação da nobreza de caráter é que atrai o ataque do nobre.

Por que eu de certa forma esfrego na cara dele: sou nobre de caráter e você um verme.

Ele não consegue ver isso de forma clara. O que alimenta o lado negativo dele são minhas reações inflamadas, ele mostra em sua afirmação. Sim, porque quanto mais me agride no fundo por causa da minha ostentação, mais eu ostento.

E assim vai.

Essa história, tão sensata, justificada e correta, no fundo é falsa. Nada mais que vaidade, só vaidade.

Não lembro se digo algo ou não, mas acho que depois é que vem isso que ele olha para o lado e comenta que está conseguindo tudo o que quer.

Quando perguntei o que ele quer de mim, me passou pela cabeça que ele poderia me querer, e isso, por um momento, me pareceu uma idéia atraente, porque me faria sentir desejada e em parte, me devolveria algo que também foi arrancado, essa noção de que sou desejável.

Mas ele responde isso que está conseguindo tudo o que quer.

Então não há mais nada que nos ligue, ele já me tirou tudo mesmo. Ele segue seu caminho, e eu o meu.

Subo por uma rua, meio sem rumo, caio no chão de exaustão. Duas meninas aparecem para conversar comigo. São meio ciganas, não quero nada com elas.

Acho que morro então.

IMAGE CFEDITS BALDOVINO BARANI | DANILO MARTINS + KATYA S | OYSTER

{28 de janeiro de 2021}




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