ESSE TÉDIO NÃO É CULPA SUA

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{20 de dezembro de 2025}

Com o significativo detalhe de que se tem uma coisa que eu me identifico zero é tédio. Nunca em toda minha vida pensei estou entediada. Nem consigo entender o que é isso direito.

Difícil de relatar não só por ser desagradável mas por ser fragmentado e não ter uma estória divertida como a maioria.

A cena que me lembro é a de nós indo, mas vagamente o sonho inicia com eu indo com um grupo e me sentindo péssima, não do jeito que me sentia quando era mais jovem, isolada e rejeitada, mas amorfa e destituída de qualquer beleza interna ou externa. Não é nem tanto a questão de idade, se bem que isso compareça um pouco e a única coisa que posso relacionar com a vida acordada é que esse pensamento tem estado presente, tipo “agora ferrou tudo”.

Eu já vinha caminhando nesse grupo e não tinha nada, nada, nada, nada que eu gostasse para mim e então, quando estamos subindo uma pequena rampa que tem um corrimão cilíndrico de metal vermelho, num local que parece bastante ali a praça de SFX, onde fica a rodoviária, aliás acho que é sim esse local, eu olho para a praça e vejo o pequeno coreto e penso:

– Dane-se, vou no coreto.

Uma das coisas que estava piorando minha situação era ficar o tempo todo ali com esse grupo, com destaque para a Carol da TV Cultura, e eles falam o tempo todo e se eu ficasse sozinha, pelo menos conseguiria sentir coisas que eu gosto.

Penso e decido isso mas o sonho não avança nessa direção e escrevendo aqui me parece que essa cena, da qual me lembro como sendo a inicial, tem mais cara de desfecho de sonho, mas não é assim que recordo.

Ah não.

Sim, antes teve a cena da padaria. Essa do coreto não é a última mas teve coisa antes sim.

Eu tinha pego dois doces de figo cristalizado, que é um dos meus doces preferidos. Estava comendo eles quando meu grupo entra nessa padaria, eu com eles, claro, e eles vão escolher doces e eu fico olhando os doces que eles escolhem e fico com vontade de escolher os deles, mas antes tenho os doces de figo e por uma lógica que não saberia explicar, acho que eu penso: mas eu já estou com meus doces preferidos, os de figo cristalizado,e então vou comento mas eles não tem gosto nenhum, parecem borrachas na minha boca.

Então em parte o que isso me causa é desânimo, pois se os doces que eu mais gosto parecem borrachas, que chance tem os outros doces de serem diferentes?

Um entendimento racional seria que eu não vejo mais graça em fazer minhas coisas, o que não tem sido super verdade. Como eu escrevi no sonho passado, às vezes parece uma coisa, às vezes o contrário. Não saberia dizer se o copo está metade vazio ou metade cheio.

Mas então nem tento me entusiasmar e escolher outros doces. Depois tem um outro trecho que talvez também venha antes do coreto.

Ali nessa padaria estou sentada me sentindo mais uma carne amorfa do que nunca, e como uma fatia de queijo que tem um logotipo pintado nele, quase que cobrindo toda a superfície da fatia de queijo, que é um desses queijos fatiados por máquina de padaria, e eu fiz um rolinho e olhando aquilo, me passa uma impressão desagradável, algo meio turvo, com um monte de corante, gorduroso de um jeito ruim, mas, e aí sim tem algo bem simbolicamente interessante, eu racionalizo. Penso:

– Mas isso é queijo fatiado de máquina de padaria e portanto é gostoso mesmo que a aparência grite o contrário.

E me forço a colocar aquilo na boca. Na minha frente tem um homem de aspecto também meio turvo e ele se serviu e me serviu de uma grande porção de carne e eu penso:

– Mas eu não quero comer toda essa carne.

Acho que é depois disso que rola a cena do coreto e em seguida temos a cena do banheiro.

Eu, me sentindo a massa de meia idade amorfa, entrei num banheiro público que é como um banheiro residencial. Dentro está uma outra mulher que também parece uma massa amorfa de meia idade, com um cabelo curto farto e preto e um olhar mau.

Tenho a sensação que tinha outra cena antes dessa mas não me lembro.

Eu entrei ali nesse banheiro nem fica colocada uma dinâmica entre eu e essa mulher.

A mulher tem uma presença beligerante,

Eu caminho até o fundo do pequeno banheiro, onde tem uma banheira.

A mulher se coloca entre eu e a porta de saída. Tem uma atitude já claramente esquisita, meio doida e perigosa.

Está me falando umas coisas agressivas com os olhos esbugalhados. Antes que eu consiga me organizar para fazer o que quero, que é sair desse banheiro, ela se inclina sobre mim de modo a quase me empurrar dentro da banheira vazia e eu estou com um pulôver de lã de manga comprida ou ela está, não sei quem está.

Mas ela me pega pelo braço direito e a partir daí eu não me sinto capaz de reagir, mesmo que já esteja ciente de que estou em perigo.

Depois de me dizer essas coisas sem forma, mas agressivas, ela me olha nos olhos, segurando, ou melhor, me prendendo pelo braço e me diz claramente:

– Esse tédio não é culpa sua.

No que fico meio tentando processar essa inesperada frase, ela vem com um estilete cirúrgico na direção do meu braço esquerdo, que está exposto, e faz um longo e profundo corte longitudinal no meu antebraço.

Teria dado tempo de eu dar um chute nela, empurrar, ela não era mais forte que eu. Mas estou passiva e meio atordoada. Sinto com nitidez o corte da lâmina e tenho a suspeita de que morri dessa forma em outras vidas, pois quando era criança sonhava direto que era esfaqueada na barriga e sempre sentia isso da lâmina me cortando. Sinto a lâmina me cortando, é mais angustiante do que propriamente doloroso, me dá leseira e começo a desfalecer.

Lembrei melhor.

Esse banheiro é o banheiro dessa padaria da fatia de queijo, onde estou sentada com o homem turvo. Eu me levanto da mesa, abandonando ele, poquijo e a carne, mas tenho uma saliva grossa na boca e eu cuspo a saliva numa toalha de banho preta que estou, aliás, justamente indo entregar para a mulher dentro do banheiro, é porisso que entro no banheiro. Penso comigo, bem, isso é nojento mas agora já foi e de uma forma que fazia lógica naquele momento, o fato dela ir usar a toalha para secar seu corpo molhado atenuava o fato da toalha já estar molhada com saliva. Uma vez a Carina criança fez xixi na toalha e me deu, porquê ela estava com nojo do próprio xixi e eu entreguei para ela minha toalha limpa mas não tive nojo da toalha mijada dela.

IMAGE CREDITS PAOLA KUDACKI | PATRICIA VAN DER VLIET | VOGUE JAPAN OCTOBER 2012

ESSE TÉDIO NÃO É CULPA SUA

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