ELA VAI DESCANSAR DE UMA VIDA MUITO LOUCA

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Mais hermético impossível. É um jardim nos fundos de uma casa. Há uma figura feminina que aos poucos vai se definindo como uma versão mais velha da Clarissa., perto dos 50 anos. Mas mais pelo que ela fala do que pela aparência, que é de uma mulher de cabelo claro, pele clara, mas indefinida. O que ela fala é que a define. Ela está oferecendo, de forma sinceramente entusiasmada, seus serviços como tomadora de conta de gatos. Assim como tem essas pessoas que passeiam com cachorros, a função dela seria tomar conta de gatos, já que gatos não tem necessidade de passeios.

Ela está dizendo que adora gatos, que está disposta a qualquer coisa por eles, etc. Parece sincera, apesar de que meio exagerada. A figura masculina que a escuta pergunta algo sobre a possibilidade de ser arranhada por gatos, se isso não a assusta. A Clarissa mais velha hesita, parece não ter pensado nisso direito, dá uma resposta meio improvisada no sentido de que pretende se previnir disso de tal e tal forma.

Então uma voz meio incorpórea, ou talvez essa própria figura masculina, que nesse exato momento eu, que estou ali participando da cena, de pé junto ao grupo, já que ao lado do homem ainda existe uma outra figura feminina, eu percebo que esse homem usa uma longa batina preta. Não gosto disso, um padre. Ele é atraente, de uns 40 e tantos, já, mas não acho que seu rosto mostre uma pessoa de bom coração. Desgosto ligeiramente dele. Mas retomando, não sei se é dele ou de uma entidade incorpórea, que vem a seguinte frase, se referindo a Clarissa:

– Ela agora vai descansar de uma vida muito louca.

Tudo ali me desgosta. Aquela situação sem nenhum, absolutamente nenhum interesse para mim. Aquele padre de ar severo. Aquela pobre mulher, de quem tenho um pouco de pena, que também não parece ter tido uma vida muito interessante, mas sim algo desnorteado e pouco gratificante, da qual agora ela precisa descansar. E então algo mais inusitado vem na sequência. O padre. agora ele com certeza, olha ao redor, para o jardim, que obviamente não lhe pertence, e diz:

– Que delícia deve ser ter um quarto aqui.

Aquele comentário é a coisa que, dentro daquele panorama de coisas que não me interessam, mais me interessa relativamente. Olho o jardim: é viçoso, mas está bem mal cuidado. Com um trato, poderia ficar deslumbrante. Me surpreendo do padre não se incomodar com isso. Mas muito no fundo, admiro a sensibilidade e o espírito dele, de perceber o verdadeiro potencial do jardim, ao invés de ficar só no estado atual, e o quanto um simples quarto poderia ser uma forma muito desejável de se viver, se estivesse num lindo jardim. Eu penso:

– Ora essa, eu acharia que um quarto era algo meio deprê de se viver, mas esse padre enxerga o quanto um quarto aqui pode ser mais legal do que uma mansão em um lugar menos ajardinado.

{26 de abril de 2012}

IMAGE CREDITS SASKIA DE BRAUW

ELA VAI DESCANSAR DE UMA VIDA MUITO LOUCA

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