{5 de novembro de 2010}
Muito, muito, muito interessante, justamente nesse momento em que estou nessa encruzilhada entre coisas sem sentido que acho que sempre foram as que me trouxeram grana e fazer coisas que tem sentido para mim.
Estou numa agência onde me candidato a uma vaga de estágio, mas que não sei por que no sonho aparece como estágio e não como emprego, por que nem de longe tem as conotações clássicas de estágio: subemprego, exploração, mal pago, etc.
Na verdade era mais o contrário, como se por ser estágio, eu não trabalharia a carga horária normal. Estou numa sala onde o diretor de arte examina meu portfólio, e a certa altura, uma garota da agência entra na sala, parecendo ser tipo a segunda mais importante ali. Meu portfólio está agradando. Logo de cara o diretor viu uma ilustra que achou muito boa.Não se trata de sorte, mas tem um pouco de sorte nisso. É aquele encontro de sintonias, onde por sorte o que você tem a oferecer é justo o que é valorizado ali. Mas o que acontece é que aos poucos começa a ficar claro que algumas coisas na minha pessoa, essas sim puro fruto da sorte, contribuem ou então confirmam que eu seja considerada uma boa artista: estou , totalmente por acaso, vestida de jeito vintage. Não soltei o cabelo, e por acaso, ele está parecendo muito como se eu tivesse feito um penteado Bonequinha de Luxo. Por acaso total, porque cada vez que eu prendo fica de um jeito.E por outro acaso, justo nessa ocasião em que meu cabelo está Audrey Hepburn, vesti uma malha de gola role com ar muito retro. Tenho muitas malhas gola role, mas só essa tem ar retrô. Nem tinha reparado nisso, que eu estava com produção vintage, mas o diretor fez um elogio que eu nem registrei, e a menina, quando entrou, antes mesmo de olhar meu portfólio em si, olhou a cara de satisfação do diretor, e olhou para mim, e sentando-se toda simpática do meu lado disse, se referindo a minha malha:
- É twiggy, né?
Twiggy tinha esse sentido no sonho, que nem dizer “ vintage” como se twiggy fosse uma marca clássica de roupas vintage.
Na hora que a garota fala isso é que me dou conta, de que por acaso, puro acaso, me encaixei nesse estereótipo que está sendo tão bem aceito atualmente, a artista vintage.
Deixo rolar, porque a admiração do diretor pelo meu trabalho é sincera, e mais importante ainda, eu estou satisfeita com meu trabalho.
Vejo que consegui me tornar capacitada para a vaga, e que basta apenas minha aprovação final.
Então estou num outro lugar, que parece ser meu atelier, e ao mesmo tempo, é como se também fosse de alguma forma ligada a agência, porque estou ali, meio que voltando da reunião, e ainda remoendo meu sucesso, mas nem é de forma vaidosa, é satisfeita, mesmo, fazendo planos de quantas horas vou trabalhar e quanto dinheiro vou ganhar, etc, quando entra ali um rapaz, que é como se fosse sócio do diretor que me entrevistou. Tinha dito que a garota era a segunda mais importante ali, mas na verdade esse cara vinha antes, ou melhor, ele era tão importante quanto o diretor, e na hora que o vejo, meio com o meu segundo piloto automático tenho noção de que ele divide a decisão com o diretor, então mesmo não estando com pique nenhum para isso, tenho que conquistar voto dele também.
Esse rapaz é uma figura muito interessante. Para começar, não deve ter mais de trinta, mas é desses caras que emocionalmente tem 40, e nem no mau sentido, no bom. Ele não é o típico cara de 30. Ele não fala as coisa de praxe, e dá para ver que não tem tato nenhum, é desses que fala exatamente como passa pela cabeça. Tem cabelo preto meio cacheado, barba e bigode, cara jovem, bem arrumadinho, mas um ar de não digo nem desanimado, mas desencantado. Ele é desencantado com as coisas em geral. Não chega a ser um desencantamento desse tipo cinismo básico, e aí que entra isso de 40 anos.
Ele é maduro, não é deslumbrado nem consigo mesmo, nem com sua profissão aparentemente glamorousa, e principalmente, é desencantado com as pessoas que trabalham nessa profissão. É como se para ele, essa profissão fosse a vocação mais pura e sincera do mundo, e ele visse um monte de gente que não era assim metida nisso, e se incomodasse com isso. Ele está ali e meio que sabe que eu tive uma reunião como sócio dele na qual praticamente consegui a vaga, e meio sem dizer nada, ele fica a espera de que eu mostre o portfólio para ele e convença ele também.
Eu não esperava por isso, e nem ele, ele entrou meio ali por acaso, mas quando me viu, se tornou meio obrigatório resolver isso, pois era o que teria que ser feito de qualquer forma. Abro minha pasta, que se tornou meio bagunçada depois que o diretor de arte olhou. Não localizo logo de cara os desenhos bons. Vou mexendo mexendo e só encontro os mais ou menos bos. O cara está do meu lado, a espera, e como é meio falhaminha não estar com tudo em cima, pego um dos desenhos mais ou menos e mostro para ele, enquanto continuo a procurar em especial um desenho muito bom, que de cara vai demonstrar o meu talento. Só que não encontro de jeito nenhum. O rapaz barbudo olha meu desenho mais ou menos com cara exatamente disso, está mais ou menos. Começa a pairar no ar uma sensação de que eu fui bem na entrevista anterioe por sorte. Não chego a me desacreditar, apenas sinto que assim como com o outro diretor, eu fui a pessoa certa na hora certa, com esse não chego a ser a pessoa errada na hora errada, porque sei que tenho coisas melhores para mostrar, mas como não encontro, e ele já começa a se impacientar, é o que acabo me tornando aos olhos dele, a pessoa errada na hora errada, inclusive porque, depois de não ter nada que não seja meia boca para mostrar, eu, para disfarçar, começo a tagarelar sobre o emprego, e aí sim, de maneira autêntica, demonstro coisas que ele reprova. Porque falo sobre o trabalho e o dinheiro, e como aquele era um bom emprego, uma boa oportunidade, etc, aos meus olhos, e isso é importante, estou totalmente inconsciente disso, revelo que o emprego não significa nada para mim a não ser dinheiro e currículo, e que eu mal gosto daquilo. E ele, que justamente já tinha esse desencanto com pessoas que procuram a profissão por motivos errados, escuta aquilo, me deixa falar, e quando, ainda procurando o desenho que me salvaria, vou até um balcão perto de uma linda janela francesa antiga, ele me diz:
- (As pessoas que procuram esse emprego tem que ver se tem algo a ver com isso mesmo, está cheio de gente procurando esse emprego mas o que mais aparece é gente para quem isso é só um emprego mesmo, tem que ver se é isso que a pessoa quer)
Todo esse pedaço de frase eu não lembro a frase, mas era esse o sentido, e eu, ainda inconsciente, irritada com meu sucesso que sentia ir por água abaixo, nervosa, mexendo nas pastas, irritada com o destino que me escondia meus desenhos bons justo nesse momento em que estava sendo imerecidamente vista como meia boca, penso:
-Bom, esse é o cricri da agência, com esse discurso chato.
Mas mesmo no meio de toda minha confusão mental, parte de mim escuta o que ele diz, e lhe dá razão. E meio que percebe, pela primeira vez com clareza, que talvez essa minha atitude, que me foi ensinada como “ a correta”, de se esforçar por um emprego que represente dinheiro e carreira, mesmo quando não se tem nada a ver com aquilo, ou mais que isso, justamente esse era o emprego certo, qualquer coisa que significasse algum prazer, então não era “ emprego”, a pessoa estaria fugindo da realidade, emprego não é para se divertir, se divertir é coisa de vagabundo, tudo isso, que ele com tanta convicção considerava um equívoco, talvez fosse um equívoco mesmo. E mais, começa a me vir um certo alívio por justamente uma pessoa que se encaixava no estereótipo do “ cara que deu certo” me dar essa visão reprovadora, mas libertadora, desse meu conceito do que é se sustentar.
E quando já estou nesse estado mental me questionando, ele arremata:
-Tem que ver bem, porque não é fácil todo dia, quando dá oito horas...
Ele não encerra a frase, que quer dizer, todo dia, quando dá oito horas da manhã, encontrar isso, apenas isso, dinheiro e carreira, pela frente para fazer.