EU SOU LA DANSE

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Uma casa grande, a minha casa, diferente mas familiar, como se meu apartamento tivesse se expandido e se enraizado no solo, adquirindo uma nova forma, que ao mesmo tempo é a velha forma, com algo indefinível da minha casa da Gassipós. 

Mas estou bem nessa casa, é como se eu tivesse crescido também. 

E ela é invadida. Ou melhor. Desde o início há muita gente lá. Convidados.

Não estou incomodada, pelo contrário. É como uma festa na qual me sinto à vontade e gosto do fato de estar sendo dada na minha casa. 

Mas estranhamente, ajo de forma contraditória, como se me importasse muito com coisas que no fundo não sinto. Por exemplo, estou num salão e brigo com uma garota morena, mas jovem, alegre, simpática, alto astral, por causa de algo relacionado a limpeza, que não lembro direito, ou eu sei que eles pensam em ir embora sem arrumar nada e me deixar toda a bagunça, ou algo do gênero, fico sabendo que ninguém ali está preocupado com a bagunça que estão deixando na minha casa.

Eu grito com a garota até conseguir fazer com que ela se sinta mal a respeito, porque no início nem isso, ela está rindo, como se tudo fosse uma brincadeira. Depois de ser bem agressiva, quando finalmente consigo atingi-la, ainda digo:

- Quando você tiver a sua própria casa...

E aí não sei se a frase prosseguia: faça o que quiser, ou se era : aí vai entender.

De qualquer forma, estou consciente, muito, muito, perfeitamente consciente de duas coisas opostas:

Primeiro, de que estou coberta de razão. Ninguém ali parou um segundo para se importar com o trabalho que vou ter para arrumar a casa, se bem que não fazem por maldade, são como crianças, acham que tudo é brincadeira.

Segundo, de que no fundo não me importo. Não me importo a mínima. Não estou me importando com a bagunça. Acho que mesmo coberta de razão, estou errada em destruir a felicidade e espontaneidade da garota, que não está mesmo fazendo por mal.

Mas no sonho, não vejo saída para esse impasse. Uma parte minha se sente bem em estar defendendo meus direitos, mas outra, mais profunda, mais forte, acha que estou errada de brigar por causa de uma coisa que nem sinto.

Aí prossegue da seguinte forma: nem bem encerro a discussão com a garota com essa última frase, que no sonho é arrasadora, de que quando ela tiver a própria casa, etc, entra pela grande porta dupla da casa uma espécie de time de bandidos.

Eles são um time, ou um bando. Existe algo de time, porque a palavra me ocorre. Mas não são jogadores, são bandidos. Mas não são bandidos maus, são bandidos bons.

São todos negros, jovens, e usam roupas de rua, meio descoladas. Eles me lembram um grupo de street dance só de negros que eu vi uma apresentação uma vez que me empolgou muito. Assim que vejo eles entrarem, esse conflito interno meu, desses dois lados opostos, se intensifica. Por um lado esse meu lado que gosta de bronquear com os outros fica feliz, porque ali tem muita justificativa para bronquear, porque eles são bandidos, e entraram na minha casa sem pedir licença. Então já me dirijo a eles gritando que eles são bandidos e não podem invadir assim.

Mas de novo, meus sentimentos são outros. É uma espécie de honraria receber aquele grupo em casa, porque eles são fortes e poderosos. Algo neles me lembra o sonho da escola de coisas palestinas, vou reler. Mas de qualquer forma, estou achando o máximo eles estarem lá e orgulhosa de terem me escolhido. Eles não pretendem nada de ruim, vieram participar da festa. O rapaz mulato com quem estou gritando fica meio sem graça com a bronca que estou dando, mas eles justamente por serem fortes e poderosos, não tem medo de broncas, então não se abala muito. 

E então , não sei se imediatamente ou com alguma passagem no meio, estou sentada no chão, entre as pessoas da festa, já desencanada de bronquear.

Abriu-se uma espécie de roda na sala, e as pessoas entram em danças, como era na escola de improviso, com a diferença que ali são dançarinos feras.

E então, uma garota, mas outra, não a morena no início do sonho, está sentada do meu lado esquerdo, em cima de um caixote, ou coisa parecida, ela está acima de mim. E fala com um dos rapazes do grupo de negros, que está se pé, a minha direita. Eu estou sentada meio distraída, mas feliz, curtindo a festa, e como disse, desencanada de broncas. Então reparo que eles dois falam de mim, e isso me chama a atenção. A garota diz:

( Ah, lembrei! Sabia que tinha uma passagem) É assim. Antes que comece esse diálogo dos dois, estamos ali sentados assistindo apresentações de dança que são como as de uma escola, começam com um grupo de crianças, até chegar no grupo adulto, com coreografias mais difíceis. Primeiro entra um grupo de nenês, mas nenês de colo, tipo o Chico. Sentam-se em roda com um dos pais ao lado, e fazem a coreografia mais fofa do mundo. Primeiro cada bebê beija a bochecha do bebê do lado. Depois eles deitam de barriguinha para baixo, e dão um beijinho no bumbunzinho do bebê do lado. Aí depois tem mais um ou dois movimentos e a coreografia acaba. Tudo muito simplinho mas fofo demais, e fico pensando como é que conseguiram que todos aqueles bebês fizessem os movimentos juntos. Mas logo saem e entra a coreografia das criancinhas, que não registro bem, e acho que em seguida vem outra, já mais adulta.

É então que a garota e o rapaz negro começam a conversar sobre a minha cabeça.

Ou melhor, na verdade a conversa começa com ela falando comigo. Ela diz:

– Você podia ser... como é o nome daquele grupo de dança, Tout...

E espera que eu complete, mas não faço idéia do que ela está falando e apesar do comentário ter tom elogioso e então deveria me interessar, tenho preguiça de pensar no assunto, então fico quieta, meio achando que ela vai parar de falar, o que eu gostaria, ainda estou envolvida na apresentação. Mas a menina não desiste e pergunta para o rapaz negro, agora sim por cima da minha cabeça:

– Como é o nome mesmo, Tout...

E o rapaz mais que depressa:

- Tout e la Danse.

– Isso, prossegue a garota. ( aqui não lembro das palavras exatas) podia ser Tout, e ela ( se referindo a mim) la Danse.

Aquilo é altamente elogioso e fico muito feliz e achando que talvez meu talento para dança tenha emergido e poderei dançar, dançar e me expressar através da dança como sempre desejei.

Então acontece a coisa mais linda. Estão servindo o bolo. Vindo do meu lado direito, mas no mesmo nível do chão, alguém recebeu sua fatia no prato e essa pessoa, ou a que serve, que permanece indistinta, me passa um prato com uma fatia de bolo do tipo “ noiva”, com pão de ló e várias camadas de glacê. Não sei se o importante era que era um bolo de noiva, ou o fato de que é um dos tipos de bolo que eu mais gosto de comer.

Na hora que recebo o prato, fico uns segundos achando que não é para mim, que eu tenho que passar para outra pessoa, mas então penso:

– Não, é para mim. O bolo é para mim. É a minha fatia de bolo. Minha fatia. 

E segurando a minha fatia de bolo nas mãos, o sonho acaba.

{10 de janeiro de 2011}

Minha fatia. Minha porção. Meu pedaço de satisfação.

Nossa, tão, tão lindo. Queria conseguir usar a beleza dos meus sonhos em alguma coisa, é lindo demais os símbolos que ele sua.

EU SOU LA DANSE

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