VOCÊ VEIO CONVERSAR COMIGO 

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6min de leitura

{29 de abril de 2025}

Nem sei como classificar.

Então vivo eu nessa estranha situação: meio que moro no meu colchão aqui da vida acordada, na calçada da Rua Elisa de Moraes Mendes, ali na altura do quarteirão antes da esquina da casa que parecia um penico, como minha mãe dizia. No mesmo lado da calçada. Passo o dia deitada, enrolada em cobertas, mexendo no celular. Mas isso não como se eu fosse moradora de rua e sim como se eu vivesse sem uma casa ao meu redor. Vulnerável. Eu me sinto assim. Está noite. Enquanto estou ali mexendo no celular, crianças estão brincando na rua. Passa um criança pequena num skate, depois acho que outra de bike e então, na calçada oposta, subindo a Elisa, um menino negro de menos de 10 anos. Ele não parece nada ameaçador e nem me olha. Essas crianças parecem estar num mesmo grupo de crianças brincando mais para cima da Elisa. Mas não sei porquê acho que se ele visse meu celular, bastante chance de querer roubá-lo. Ah, acho que o porteiro do teatro me dizendo que o ladrão passa de bicicleta e arranca o celular da mão da pessoa tem a ver com isso. O fato do menino ser negro também, por mais preconceituoso que possa ser.

– Ele poderia arrancar meu celular com facilidade, eu penso.

Agora escrevendo, esse pensamento me parece bem nada a ver

O menino não tinha nem passado do meu lado da calçada. Bem.

No que o menino já sumiu rua acima, fico interagindo com uma figura incorpórea que fica fora de quadro e então eu descubro algo para eu fazer.

Rapidamente fica organizado para mim uma atividade que eu gostava e desejava fazer. Não fica colocada qual. E então eu olho para a rua e vejo o seguinte grupo descendo a Elisa. Um homem que fica muito vago, quase um vulto, acompanha um grupo de umas 4 ou 5 crianças, a mais velha de uns 6-7 anos, uma menina, vem se arrastando de bruços pela rua. As outras crianças são ainda menores e tem uma que deve ter uns dois anos. Um grupo bem difícil de ser conduzido.

Fica confusa a trajetória pois no começo parece que eles vem ali do posto na diagonal meio que na minha direção, mas mais prá frente parece que o objetivo era atravessar a rua para o lado da calçada oposto ao meu.

De qualquer forma, aquilo me mobiliza e eu ponho de lado a tal atividade que estava prestes a iniciar, e que tinha chegado para mim como quase que uma resposta às minhas indagações sobre o que fazer da minha vida e vou ajudar as crianças a atravessar a rua. Parece que o homem já levou a menina que rasteja de bruços para o outro lado da rua, mas é muita criança para ele controlar sozinho e as mais novinhas ficaram ali na rua e é para elas que eu me dirijo.

Falo com muito cuidado com elas, e o menorzinho, um menino que ainda nem fala direito, fica parado e não quer vir comigo.

– Você não quer vir? eu pergunto.

Ele fica parado me olhando com aquele olhar expressivo das crianças.

Não forço nada. Acho que uma das crianças eu consigo ajudar a atravessas a rua e ir para junto do homem. Mas não importa, o importante era ficar ali protegendo as crianças até que o homem voltasse para pegá-las.

E então acho que isso ocorre, aqui embola um pouco, mas em seguida a isso uma menina morena de ar radiante se aproxima de mim muito animada e diz:

– Eu vi o que você fez.

Fico parada escutando.

– Eu ia pedir o telefone da taróloga mas isso me pareceu um sinal, continua ela. Você quer me dar seu contato? ela pergunta.

O que isso queria dizer era se eu queria dar meu contato para talvez ser envolvida em atividade daquele grupo que protegia e cuidava dessas crianças.

Eu digo:

– Sim, claro.

Dou meu cartão para ela. Sinceramente me colocava a disposição para ajudar crianças, algo que sempre me mobilizou profundamente.

E nisso a garota se transformou num homem. Seria um homem entre 40-50 anos, um pouco careca mas bem atraente, mas principalmente com uma energia muito boa e muito familiar. Eu praticamente sei o que ele está pensando e sei que ele está interessado em mim.

Seriamente interessado.

Então acho que em decorrência desse interesse, ele me acompanha a uma visita à minha família no salão da Gregório. Tudo continua de noite.

No salão estão minha mãe, umas pessoas vagas e meu pai sentado numa cadeira ali perto do canto onde ficava minha mesa de trabalho.

Primeiro ficamos eu e esse homem de pé acho que conversando com minha mãe, e acho que estou de pijama e acho que estou esquecendo algum detalhe aqui.

Mas então o homem vai na direção do meu pai e lhe faz uma pergunta. Tudo isso acho que tinha um sentido a mais, não era uma simples visita social.

O que lembro é assim. O homem pergunta algo para meu pai. Meu pai já está com Parkinson, mas o homem não sabe. Meu pai responde algo meio sem sentido.

De lá o homem me olha, confuso, e eu faço discretamente sinais no sentido de que meu pai está meio mal da cabeça mas em seguida outro sinal incentivando o homem a conversar com meu pai mesmo assim, pois meu pai iria gostar. A pergunta inicial que o homem tinha feito tinha uma certa funçãoinformativa, mas meu pai não era mais capaz de responder. Mesmo assim eu o incentivo a falar com meu pai, que gostava de atenção.

Aqui é muito, muito intrigante.

No que eu faço isso de incentivar esse homem que já sinto que vai vir a ser meu marido a conversar com meu pai, tenho consciência de que o incentivo a fazer algo que eu mesma não vinha fazendo muito, que era conversar com meu pai.

O homem troca umas palavras e meio incentivada por isso eu me aproximo e começo a conversar também com meu pai. A conversa não fazer sentido algum, pois meu pai não está mais em suas faculdades, mas… mesmo assim, ele sente a troca de afeto e atenção.

Minha mãe se aproximou e está acompanhamdo silenciosamente.

Então meu pai, num momento até bem lúcido, me fala:

– Você veio conversar comigo, você não vinha mais conversar comigo.

Aquilo é como um choque elétrico no meu peito.

Digo:

– Isso não é verdade, eu tenho vindo sim.

E imediatamente começo a chorar pois sinto que ele tem razão.

Nisso minha mãe se vira para o homem e diz, sem nehuma agressividade:

– Patachoquíssima.

E como parece que eu sou tão conectada a esse homem que sei o que se passa com ele, eu percebo que algo ali naquele choro, talvez a pureza, o encanta eque isso precipita sua decisão de casar comigo.

Não estou fingindo nem usando meu choro para isso, mas tenho consciência de que tem esse efeito.

E nisso meu pai prossegue nessa frase de partir o coração:

– Eu entendo. Antes eu era um prodígio e agora sou apenas normal.

Era assim que ele se enxergava, e pelo menos era algo piedoso, não ter noção completa do seu estado.

Acho que o sonho acaba aqui.

Na verdade relendo lembrei do que fechava o sonho.

Aquilo do meu pai não podia ser mais dilacerante, mas a presença desse homem era quase como que uma barreira protetora entre eu e essa dor toda.

Esse homem iria ficar comigo. Agora eu tenho o meu marido, eu pensava.

Essa dor toda não era mais minha única realidade.

Lembrei outro detalhe. Na minha mão esquerda, uso uma pulseira e dois anéis. Um deles é de brilhante. Fico um pouco supresa de estar usando um diamante assim na rua, mas a beleza da minha mão com aquelas jóias todas prevalece.


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