É esse tipo de sonho que até mesmo em mim provoca dúvida a respeito de serem os sonhos comunicações com sentido e não doideiras aleatórias.
Foi muito nítido e coerente dentro do próprio sonho, quase como uma experiência da vida acordada. Depois de uma vida de sonhos, não consigo mais chamar a vida acordada de “vida real”.
Estou na Gregório e tenho organizado uma filmagem.
Não estou preparando. Já está tudo pronto a não ser um último detalhe.
O filme, que parecia ser um curta, nada a ver com o seriado, exigia um cachorro para o personagem principal.
Eu já tinha essa questão resolvida como plano, faltava apenas botar em prática.
Estou calma e compenetrada nesse sonho, e com zero hesitações ou restrições em relação a gravação, que também não tem aquele fator de desorganização ou improvisação ou sobrecarga que normalmente consta em sonhos sobre filmagens.
Meu plano é pedir emprestado o cachorro da Aurora, nossa vizinha da frente.
No que o sonho começa, estou atravessando a rua na direção da casa dela, que seria na verdade onde era a casa do médico, a casa mais atraente do quarteirão, com um belo portão de madeira e muito verde e sempre estava tendo festas ali.
Estou receosa com apenas uma coisa: é um pedido estranho, para uma pessoa com a qual eu tinha quase que nenhuma familiariedade e por um instante quase que peço para minha mãe, que está comigo e a Lú também, falar com a Aurora, e até acho que chego a pedir, mas quando estamos ali na cerca do jardim, que não era nem como a casa verdadeira da Aurora, que não tinha cerca e de jardim tinha apenas um gramado sem graça e nem como a casa do médico, com seu misterioso portão, e sim uma cerca baixa acho que de metal e do lado de lá da cerca, sentada numa cadeira de costas para a rua está a Aurora, quando a vejo, tomo eu mesma a iniciativa.
Duas coisas me chamam a atenção e são mais ou menos a mesma: tanto o jardim quanto a própria Aurora estão num estado meio complicado de definir, pois não chegava a ser deterioração. Nem maltratado. Mas o jardim claramente estava há muito tempo sem poda e a própria Aurora estava com um coque grisalho meio eriçado e uma roupa amassada que parecia ter sido usada ontem.
E… estava fazendo uma tapeçaria parecida com essas minhas.
Não um bordado convencional. Uma tapeçaria como as minhas.
Num impulso espontâneo eu digo:
– Oi Aurora. Então, queria te falar uma coisa…
E aqui acho que é caso de fazer alguns rodeios para tornar minha abordagem mais normal.
– Eu morei aqui por vinte anos e…
Agora acordada me surpreendi com esse cálculo mas foi exatamente isso, dos 15 aos 35 anos.
– … e conheço seu cachorro muito bem, ouvia os latidos dele e…
Eu estava arrumando ali a frase para elogiar o cachorro dela, dizer que era um cachorro amigável e bonzinho, pois essa era a justificativa que o tornava o ideal para a filmagem, quase como se fosse um casting de ator mesmo. No que estou dizendo essas coisas procurando ser o mais educada e polida e normal possível, algo na Aurora me perturba.
Ela parece ausente, não como se estivesse me ignorando, mas como se tivesse alguma dessas doenças mentais, alzeimer, que isolam a pessoa.
Pois ela não parecia me escutar. e continuava com seu bordado
Então para minha supresa, quando estou nesses rodeios com os quais pretendo elogiar o cachorro dela, ela, sem me olhar, me corta de maneira lúcida e precisa dizendo:
– O cachorro quase não late de noite.
Não lembro da frase, mas era algo nesse sentido, o que esclarece tudo para mim. Ela estava me escutando sim, mas tendo achado que a minha aproximação tinha mais chance de ser para alguma reclamação, aquele alheamento era uma barreira meio de defesa.
Imediatamente esclareço que não tenho nada, nada para reclamar do cachorro dela, muito antes pelo contrário, queria pedir um favor que envolvia o cachorro , isso, claro, e aqui enfatizo várias vezes, se ela não visse nenhum, absolutamente nenhum inconveniente de nenhuma ordem no pedido.
Falo assim mesmo em etapas, sem soltar tudo de uma vez.
Muito significativo isso, pois é justamente o contrário do meu habitual.
Aurora arrefece um pouco, mas não totalmente. Ainda está na defesa, pode-se ver. Mas polidamente convida eu e minha mãe e irmã a entrarmos, algo aliás, que provavelmente ocorreria se essa situação super passível de acontecer acontecesse mesmo.
Então entramos. Ali na sala de casa de família de classe média alta, a família da Aurora está almoçando.
O marido e uns filhos estão sentados na mesa.
Eu continuo com meus longos rodeios.
Aurora interrompe um pouco para dizer ao marido que leve um prato de comida para o vigia da rua, como naquela cena do filme filipino em que as crianças levavam um prato para o tio inválido.
Eu penso:
– Que bom coração o dela, ela cuida do vigia que tem problemas mentais.
Mas nisso, enquanto olho ali as travessas pirex com as comidas sobre o aparador, como que num buffet, pois não estavam sobre a mesa, eu penso:
– Mas porquê ele teria problemas mentais? Aliás tivesse não poderia ser um vigia.
Prá não dizer que não entendo nada desse sonho, agora que escrevi isso me veio um flash. A comida, cuja falta aciona a minha síndrome de pânico, que é uma instabilidade mental, para essa parte minha que é o vigia da minha segurança.
Hoje tive sim síndrome de pânico.
Mas essa questão até me faz deixar de lado por um momento o meu objetivo.
Então a Aurora, um pouco mais tranquila de que eu não trago problemas, vem conversar comigo e eu chego no ponto de que queria saber se ela estaria disposta a me emprestar o cachorro dela para a minha gravação.
– Depois eu trago de volta, digo.
A parte de eu dizendo essas coisas não lembro, mas acho que lembro de dizer isso de trazer o cachorro de volta.
O cachorro, que em momento nenhum comparece nesse sonho sobre ele, seria um cão bem vira lata desse tipo caramelo, com aquele sorriso de cachorro. Um cão boa praça mesmo.
A Aurora, com um resquício de interesse e quase sorrindo, faz então a pergunta que ficou mais forte no sonho:
– Sobre o quê é o filme?
Eu tinha organizado a conversa mentalmente mas não havia previsto que ela perguntaria isso, então quando respondo, é a primeira vez que essa informação aparece no sonho:
– É sobre um cara, que está fazendo uma filmagem e que pede emprestado o cachorro do vizinho para a gravação mas acaba gostando tanto do cachorro que não quer devolver.
E nesse instante, apenas nesse instante, me dou conta de que o filme reproduzia a mesma situação na qual eu me encontrava, com apenas uma diferença: eu pretendia devolver o cachorro e havia sido porisso que espontaneamente havia assegurado de forma desnecessária, pois era algo óbvio a princípio, que depois da gravação eu iria sim, com certeza, devolver para Aurora seu cachorro .
Esse sonho dá um lindo conto.
{31 de outubro de 2024}
IMAGE CREDITS TIM WALKER | RED VALENTINO AD CAMPAIGN | SPRING SUMMER 2012