{29 de março de 2025}
Mesmo assim deixando uma sensação de libertação.
Acredito que a Inteligência que compõe os sonhos seja infinitamente superior a humana, então tudo importa. Tudo tem sentido.
De cara essa sensação de estrangeiro. Alemanha. Um lugar no qual nunca estive.
Esse lindo escritório de design, térreo, amplo, de chão de cimento queimado, uma enorme sala e curiosamente o sonho que abri para escrever esse em cima se passa na FAU. Sim, um escritório estilo FAU.
Sou designer.
Então olho ali os lay-outs quase finalizados de um job que estou fazendo em parceria com uma garota.
Estão quase excelentes. Tem potencial, mas a realização falta.
Fico olhando para aquilo, que é em papel mesmo, um cartão grosso formato A3, nada de tela de computador, e pensando no que seria.
Deve importar o fato de que ontem, exatamente, fiquei olhando para os ads das tees do Marciano em Honduras pensando exatamente o mesmo.
Nesse momento estou totalmente integrada naquela vida, sem nada de conflito.
Aí não lembro como, ou talvez seja direto, estou numa espécie de loja que seria pegada a esse escritório, numa disposição que lembra um pouco a da galeria mega legal que fizeram a em frente ao supermercado Padrão, nem o escritório nem essa loja davam direto para a rua.
Outra coisa que fica discretamente ali marcado é o fato de que o escritório tem uma ampla abertura de garagem, mais até que uma porta, ou seja, é vazado para o exterior.
Isso de falta de aberturas para o exterior é meio recorrente nos meus sonhos, algo meio opressivo, então esse detalhe passa algo bom.
Nessa loja me vejo de frente para um balcão de comércio, mesmo que a loja não se configure como loja de nada, acho que nem vejo coisas ali, está tudo meio vazio, falando com um homem que no sonho seria meu pai.
Fiquei pensando em como descrever esse homem e o melhor que me veio seria que ele é o estereotipo perfeito do perfeito designer.
Até esse elemento de “alemanha” acho que teria a ver com o comentário da Pat sobre a modernidade dos alemães, coisa que eu super hiper concordo mas… não gosto.
Até gosto, concordo com a Pat que eles são o que tem de mais moderno, mas não quero. Acho que talvez porisso tenha essa vibe de Alemanha, Berlin, e não de Londres, que eu amo.
Esse homem meu pai teria assim uns 40 anos, meio franzino e não alto, com essa cara meio depenada que tem esses designers, não entendo, porquê eles tem todos a mesma cara? Parecem ets. Não tem pelos no corpo. Sua cabeça é meio espremida, sem cabelos, mesmo não sendo tecnicamente careca e com esses óculos de designers. Tem alguma coisa errada com você olhar para a pessoa e pelo visual delas saber exatamente o que ela faz da vida.
Esse homem está logo de cara despejando uma falação dissimuladamente agressiva a respeito do meu trabalho para mim . Fica no limite entre ser explicitamente agressiva. Ele me diz, num despejo mesmo, que meu trabalho basicamente “não chega lá”.
Que eu me esforço e me esforço mas quando termina…
– ...o cliente olha e “não é aquilo”.
Ele fala quase como se fosse uma impotência criativa.
E então um importante movimento se passa na minha cabeça.
No que estou a princípio escutando ele, e isso dura uns bons 10 minutos, estou sim concordando, mesmo que esteja achando que “é assim mesmo”.
Mas quando ele fala isso de “nunca é aquilo”, me dá um pera aí.
– Péra aí, eu digo. Não é nada assim. Aliás se tem algo que escuto bastante de clientes é que “é exatamente o que eu estava pensando”.
Isso é verdade de uma forma bem complexa. Eu fui uma boa artista comercial justamente por ser versátil e captar o que o cliente queria melhor até que ele mesmo. Mas nunca achei que eu fosse uma artista de primeira linha, tipo o Jason Brooks.
Mas na carreira profissional, eu consegui sim bons resultados, pelo fato de ser isso o que mais importa.
E mesmo assim, no aspecto pessoal artístico, eu me identificava com o que ele falava pois tenho essa sensação de que tenho mais quantidade do que aquele , como dizem, WOW factor. Mesmo com essa nova leva de criações que aprendi a fazer desde que vim para a kit.
Então vou falando e uma onda de indignação vai se erguendo dentro de mim, mesmo que tudo se passe enquanto pronuncio essa frase relativamente curta acima.
Há uma figura feminina apagada que permanece ao lado do meu pai, no lado esquerdo do meu ponto de vista. Não diz nada e parece uma sombra.
Sobre o balcão de madeira meio antigo, e constituindo praticamente a única coisa nessa loja, há um telefone de disco tocando e meu pai não atende.
E então, sem preparação alguma. me escuto emendando a frase acima da seguinte coisa:
– ...e atende esse telefone, porquê você sim precisa se defender, eu não preciso.
Querendo com isso dizer que no outro lado da linha estava um cliente querendo reclamar do trabalho do meu pai, que também era designer.
O olhar do meu pai recua. Venci o embate. Mas ele sim tocou num ponto que me incomoda. Isso nem é novidade. A quantidade de esforço, a enorme quantidade de esforço que eu emprego… seria isso mesmo? Seria um esforço desproporcional para compensar uma certa falta de brilho? Não tenho a mentalidade do meu pai, que queria claramente me atingir e me desvalidar por completo, mas tenho sim esses questionamentos.
Volto para a agência pensando nisso e minha colega está sentada ali na nossa mesa, que lembra a mesa da FAU. Eu me sento e digo a ela:
– Falta alguma coisa no lay out.
Deveriamos entregar hoje no fim do dia. Ela seria a parte mais aplicada e responsável da dupla, enquanto eu era mais errática mas mais “criativa”.
Ela fica quieta como que me dando apoio. Se eu acho que pode melhorar, então é caso.
Fico parada segurando o lay out pensando em como seria esse melhor e nisso se aproxima meu supervisor, o supervisor pessoal meu ali, que é quase um clone do meu pai, mas isso no sentido que falei, de que todos os designers parecem clonados e não nada exclusivo do meu pai. Está com a mesma roupa oficial de designer, que seria calça skin e blusa de manga comprida justa de gola roulê.
Ah, e sim, os óculos de aros retangulares grossos meio caricatos.
Ele é bem legal comigo. Gosta do meu trabalho. Me chama para a sala dele.
Ali a área dos designer era uma grande sala como a da FAU, mas os supervisores tinham pequenas salas, não baias, salas mesmo, com janelas envidraçadas ali no canto.
Vou com ele. No que estamos na sala dele ele me diz animado:
– O … (nome que não ficou) está no telefone querendo falar com você.
Fico muda.
– Você sabe o que isso quer dizer, não é? ele pergunta.
– Sim, ele é o melhor designer da Alemanha.
Meu supervisor balança a cabeça radiante.
– Deixa, ele vai ligar depois.
– Imagina, quero atender agora.
Meu supervisor me leva até a sala do lado, a sala dos telefones. Isso dele propor e me incentivar a não atender imediatamente, partindo de uma figura que, essa sim, parecia um pai de tão não competitivo e querendo o meu bem, é algo intrigante.
Na sala dos telefones há um telefone antigo já fora do gancho sobre a bancada. Uma comprida bancada ao longo da parece, numa sala também desprovida de qualquer outra coisa.
Meu supervisor indica o telefone, se detendo na entrada da sala.
– Aperte o 1, ele me diz.
Um daquele telefones de ramal.
Eu me sento. Coloco o telefone no ouvido. E escuto do outro lado da linha:
– Silvia. Silvia.
Aperto o 1. Respondo.
– Oi. Oi.
Do outro lado o designer melhor da Alemanha continua me chamando.
– Silvia. Silvia.
– Oi. Oi. Estou aqui.
Aperto o 1 novamente. E a coisa segue de modo que fica claro que não estou sendo escutada. Olho com atenção para o aparelho e seus números. Apertei certo?
Parecem haver duas teclas ali com número 1. Aperto a outra. Volto a apertar a anterior.
Nada. Tenho certeza de que da minha parte estou fazendo o certo mas a ligação não está se completando até que percebo que a linha ficou muda do outro lado. Ele desistiu.
Aquela procura da parte dele representava muito mais do que uma simples deferência profissional, seria como que uma resposta do Universo às minhas insatisfações e questionamentos artísticos. Se aquele designer top queria falar comigo, só poderia ser por ver mais valor no meu trabalho do que eu mesma via. Ele não iria fazer contato com um designer que fosse, como eu me achava apenas “competente comercialmente”.
Então tinha um valor enorme para mim.
Vou a procura do meu supervisor para perguntar o que fiz de errado.
Não lembro o nome dele. Raras vezes preciso falar o nome dele para outras pessoas e não lembro o nome dele.
Aqui péra.
No que desligo o telefone, mesmo sem ter realizado a ligação, estou numa mistura turbilhante de emoções. Por um lado, parece mesmo a descrição do meu pai, nem mesmo essa auspiciosa ligação “chega lá”. Por outro, só o fato dele ter me procurado já demonstra algo que não tem mais como ser revertido. Não havia outro motivo na face da Terra para ele me procurar a não ser falar de trabalho e não havia outra razão para isso que não fosse por me achar talentosa, a altura do inquestionável talento dele.
E penso assim:
– Preciso de um café.
Isso não fica como procrastinação e sim como uma coisa meio sutil de que depois de algo excitante e legal preciso de um café, coisa que sinto na vida acordada, e também algo mais vago de que ali, naquele emprego de designer, pois eu era uma empregada, isso estava periodicamente ocorrendo, eu tomar café.
E entro numa sala que tem um café ali já na xícara a minha espera e também uma pequena cama, quase como esses leitos de médico de hospital, com esse meu lençol de flores que era a capa de edredon, não seria uma cama comunitária e sim a minha cama particular ali, algo que era ambíguo, a cama era pequena, não do tamanho queen, com meu lençol preferido, mas fica meio colocado que eu muitas vezes passava a noite na agência.
Nesse momento é muito bizarro, pois escuto algo dizer:
– Silvia.
Me chamando, exatamente no momento em que eu me jogo, sim me atiro na cama. Não sei o que fiz com o café. Acho que tomei.
Esse breve momento é uma espécie de recharger mesmo, pois me tira daquele embatucamento de achar que precisava saber o nome do meu supervisor para encontrá-lo.
– Não preciso. Vou procurar na agência. Seria mais fácil perguntar onde ele está para alguém, mas se não tenho o nome dele, o jeito é procurá-lo eu mesma.
Me levanto e ali ao lado há uma sala não grande com carteiras uma pegada ao outra, formando um quadrado onde virados para a parede, os supervisores trabalham diante de computadores. Perto da porta vejo um dele que parece uns 80% o meu. Como disse, eles são tão semelhantes entre si que parecem clonados.
Ele está mastigando um sanduíche.
Abro a porta e falo com ele sobre a ligação.
Ele me responde algo ininteligível. Não por estar mastigando, mas isso que nos sonhos ocorre muito, da pessoa falar algo que até parece em outra língua. Nem é deficiência auditiva minha. Nem tenho certeza se ele é meu supervisor. Pode ser que justamente tenha me dito isso. Mas fica super claro que aquele não é um bom momento para interrompê-lo, seja ele quem for.
Mas uma coisa que não deu certo, penso enquanto fecho a porta.
Volto para a sala dos designer, que é ao lado, meio por inércia.
Está escura e meio vazia.
A minha mesa e da minha parceira está vazia.
Me sento ali e entendo o que houve. Ela ficou inutilmente a minha espera, eu não voltei e ela achou melhor entregar o job do jeito que estava.
Os jobs eram colocados ali numa espécie de depósito de jobs.
E aqui me vejo entrando numa coisa que até identifico na vida acordada e que não gosto muito. Vou me agarrando no que dá.
Não tive a confirmação do meu pai. Não consegui ser salva pelo designer top. Não consegui falar com meu supervisor para reverter isso. Não consegui vir ajudar minha colega a tempo. Todas falências. Tudo o que eu tenho naquele momento é esse job que eu achava que poderia fazer melhor. Quase como se no fundo, no fundo, e aliás bem isso mesmo, não tendo conseguido por completo a validação do tal designer top, eu buscasse naquele job, atingir um resultado que provasse para meu pai o quanto ele estava errado. Pois não era uma atitude muito saudável. A agência estava ficando vazia. Todos estavam indo para suas casas. O job tinha sido colocado não sei onde. Sim, no lugar onde se colocavam os jobs finalizados para a inspeção avaliação final dos supervisores, mas numa agência daquele tamanho, eram centenas de jobs juntos.
– Vou procurar nem que leve a noite toda, eu penso.
Mas não é um pensamento feliz. Ao meu redor sobraram uma meia dúzia de designers que se curvam sobre seus trabalho, pessoas que como eu meio que só tem isso na vida e mesmo sendo figuras masculinas de variadas faixas etárias, todos lembram um pouco eu.
IMAGE CREDITS NORBERT ZSOLYOMI | NIKI HADJU | MARIE CLAIRE CZECH MAY 2015