{6 de dezembro de 2009}
Nunca me senti tão fracassada e sem perspectiva na vida, e hoje tive muitos sonhos, agora só lembro desse.
Eu entro naquele salão do segundo andar do Círculo Militar, que a gente cruzava para fazer balé. Mas estou entrando por um acesso lateral, que nem sei se existe na vida real, e quando estamos para entrar no grande salão, onde tinha uns móveis meio coloniais, tipo sala de visita, vejo passar pela frente da abertura da entrada, pelo lado de dentro do salão, um enorme dinossauro, mas é como se fosse um esqueleto de dinossauro andando.
Estou com umas pessoas, e digo: olha aquilo!
E então entramos e sei do que se trata.
Ali está havendo algo como se fosse a produção de um filme, da qual faço parte com algum trabalho visual, meio como era quando eu fazia figurino de teatro. Mas a produção era de filme, isso eu sei. Assim que entramos no salão eu vejo de novo o tal dinossauro. Ele é uma coisa difícil de explicar, porque ele é feito de uma mulher, uma moça, que foi acoplada meio cirurgicamente a uns ossos, umas peças que reproduzem ossos de dinossauros, umas pernas longas, acho que ela tem asas daquele dinossauro que tinha asas. A moça está vestida com um colant meio cor de osso, e as peças, que são de algum material altamente tecnológico, são da mesma cor. Tudo é de alta tecnologia, um lance científico até, não uma coisa tosca, e duas coisas me chamam a atenção. Primeiro que aquilo tudo não é uma fantasia, aquilo se tornou parte dela, ela foi modificada para ficar daquele jeito. E segundo é que eu acho simplesmente lindo. Acho que a moça ficou maravilhosa com aquelas modificações, fico meio deslumbrada até e isso é que me chama a atenção, agora acordada. Por um lado, realmente a coisa está estética, e não tem o sentido de uma deformação na moça, e sim de uma mutação, como se ela fosse um mutante entre ser humano e dinossauro, um ser de estória fantástica. Mas eu vejo isso como se ela, daquele jeito fosse ainda mais linda do que uma seria se fosse uma mulher normal, aquilo me parece realçar ao máximo a beleza que ela tinha, as qualidades femininas dela. A moça está dando uns passos com aqueles ossos longos, que quase parece que ela anda sobre uma perna de pau, e aí vem uma garota da produção e diz que está bom, e mexendo na estrutura de ossos, desacopla a parte de trás, das asas, e a moça fica só com a parte das pernas longas, As pernas eram definitivas, mas a parte de trás, com as asas, só acopladas, não faziam parte do corpo dela. Fico desapontada, eu achava mais bonito quando o corpo dela incluía as asas, porque era mais diferente de um corpo humano ainda, do jeito que ficou, com as pernas acopladas nuns ossos longos, que a elevam a quase dois metros, e mais uns troços nos braços, não ficou diferente o suficiente para mim, imagina só.
Então seguimos em frente e entramos no salão onde a gente fazia balé e é onde está acontecendo o trabalho principal de produção, a moça dinossauro e a garota de produção estavam ali fora , andando no corredor, para testar. Entramos e então me dou conta do que já sabia, que eu sou parte importante ali da produção. É assim: eu estou fazendo parte da produção daquilo, que é um filme importante, e aceitei passar por modificações, como a moça, que são feitas por um dentista, porque as minhas modificações partem dos dentes. Na hora em que eu entro, dois médicos vem falar comigo: um um pouco mais jovem, de cabelos pretos, que fica a minha esquerda, e que parece humano e legal, só que menos importante e meio inútil, e o mais careca, mais velho, de olhar meio irritado, que fica a minha direita, e que vem me falar dos procedimentos, vamos anestesiar, depois da operação você vai ter que tomar esses antibióticos, etc. Tudo num tom meio automático, e eu também respondo meio automático, porque nem estou pensando nisso. Só que então, depois de perceber que o médico de cabelo preto ficava me olhando de um jeito apoiador, e preocupado e o médico careca, apesar de falar num tom frio e automático, não terminava nunca de dizer todo o pós operatório, e tinha uma espécie de ênfase no jeito com que falava, como se o subtexto fosse: então, depois não diga que eu não te avisei. Então começo a pensar: as outras duas intervenções, também feitas por ele, eu dei conta, mas parece que essa terceira é muito mais agressiva, e esse careca, com essa frieza profissional, parece estar querendo dizer isso. Então eu interrompo aquele automatismo geral e digo:
– Fala a verdade, tá parecendo que vai ser bem difícil essa operação, né?
O médico moreno quase fala algo, mas mantendo-se no seu papel de solidário mas inútil, o que ele poderia me dizer seria inútil. Já o careca acentua a frieza , não responde o que eu perguntei e ao invés disso começa a dizer, como se não se importasse com isso, que eu tinha chamado ele de imbecil no telefone.
Tipo assim:
– Então, como eu disse, naquela conversa por telefone em que você me chamou de imbecil., esse procedimento...
E ele continua, mas vendo como seus olhos intensificam a frieza e irritação quando ele menciona, bem falsamente casual, a coisa de eu ter chamado ele de imbecil, me ocorre que ele aguarda para se vingar durante a operação, não judiando de mim, mas sabendo que é uma operação traumática e sem fazer nada para atenuar isso. E o mais absurdo é que eu NÃO CHAMEI ele de imbecil, mas ele parece estar convencido disso.
Eu digo:
– Eu nunca chamei o senhor de imbecil!
– Chamou sim, você disse: o senhor é um imbecil, e depois eu tentei explicar, etc , e reproduz o trecho de conversa nos mínimos detalhes, o que me mostra que essa conversa aconteceu, mas por outro lado me prova que não foi comigo, porque eu não me lembro mesmo de ter tido aquela conversa com ninguém, muito menos com ele, e acho que ele está fazendo confusão.
– O senhor está me confundindo com outro paciente, eu nunca tive essa conversa com o senhor.
Estou sendo super sincera, e mais que isso, estou certa. Não fui eu que falei aquilo. Mas o médico já reassume sua superioridade profissional e acha inconcebível que ele, o médico, esteja enganado, então passa por cima do que eu digo, ainda com um tom de: vamos deixar essas insignificâncias de lado, mas que foi você, foi sim, e segue falando do procedimento, o que me dá mais insegurança ainda de que não terei atenuante nenhum do sofrimento, que até agora não ficou claro qual seja, só que parece existir. Então fico bem com medo. Inda mais que o meu trabalho é justamente usar essa própria operação para fazer os designs do personagem representado por mim, eu terei que voltar para casa e trabalhar, depois de operada, sem saber direito em que condições estarei, nem de anestesia, nem de cortes e pontos, porque tudo indica que é uma intervenção grande. A coisa se situa no máximo que poderia acontecer numa cadeira de dentista, mas uma operação de siso, por exemplo, pode ser bem complicada, e eu inchar muito e depois teria que fotografar minha cara inchada para usar no lay out?
Tudo começa a parecer muito assustador, principalmente porque começo a achar que justamente eu é que estou menos ao par do quanto aquilo é assustador. Eu peço licença e me afasto. Minha mãe está ali, e eu vou até ela em busca de consolo. Falo: mãe vamos conversar lá fora.
Um cara da produção abre uma portinha lateral, eu olho, é um vão do tamanho de um vão de elevador, menor ainda, que forma um buraco tipo um metro e pouco abaixo.
Me passa pela cabeça se ele não teria me conduzido até ali justamente por ser um buraco fechado sem chance de fuga. É verdade que me passou pela cabeça fingir que ia até o corredor lá de fora falar com minha mãe e dela fugir, mas não estou levando essa idéia a sério. Eu fico pensando: e agora, vamos pular? Dá para pular, será que minha mãe agüenta? O moço da produção que está atrás segurando a porta aberta, fala: tem uma escada.
Não vi escada nenhuma, acho que ele está chamando aquele desnível de mais de metro de escada, talvez, mas então diviso na escuridão os degraus, cobertos de borracha preta, com saliências esféricas pretas, como tudo o mais ali, porisso era tão escuro. Eu desço a escadinha e minha mãe também, e o cara fecha a porta atrás da gente. Eu digo a minha mãe que estou com medo da operação, mas ela é fria, desinteressada, e responde com algo que me faz sentir ainda pior, É melhor nem falar com ela, só piora meu estado de ãnimo, eu penso, e encerro a conversa e volto para o salão. Estou mais ou menos conformada em me submeter à operação, mesmo sem saber direito o que envolve. Eu sei que serei capaz de dar conta, só que está me parecendo que será algo mais difícil e sofrido do que eu imagino. Pensei uma hora em simplesmente fugir, mas não vou fazer isso. Aquilo está acontecendo dentro de um contexto de trabalho, de algo que eu quero, e o que vão fazer comigo não é nada de cruel ou desumano, só algo mais pesado do que eu calculava, porque na verdade nem estava calculando nada, só agora parei para pensar sobre o que terei que passar, esse é o ponto. Não estava nem pensando, simplesmente topei.
Agora acordada, acho que racionalmente a explicação desse sonho é que algo difícil vem por aí. Estou disposta a passar por isso, se for para meu bem, mas queria pelo menos algum apoio. Estou nas mãos de um médico que está com raiva injusta de mim, e minha mãe não sabe ser mãe. No sonho , meu único alívio, que é colocado como algo qe não tem poder suficiente para ser de grande ajuda, é o médico moreno, um médico de uns 40 anos, pele bronzeada, cabelos fartos, negros, uma franja penteada de lado, e que fica sempre a minha esquerda, e me olha de um jeito bom, humano.
IMAGE CREDITS MIKAEL JANSSON | LARA STONE