SOU CANTORA

11
3min de leitura

Eu era uma cantora de ópera e tinha o papel principal numa grande ópera que estava sendo montada. Os ensaios eram numa espécie de palco grego, baixo e rodeado por degraus, onde a platéia fica sentada assistindo. Tinha uma grande platéia assistindo os ensaios, entre eles amigos e conhecidos meus. O João estava lá, no canto de trás da platéia, bem perto de mim, com a Clarissa. Eu estava super super feliz. A cena que a gente estava ensaiando era assim: eu ficava sentada, e um mulher mais velha ficava cantando uma música na minha frente. Depois era minha vez de cantar. Eu estava segura e cantando bem, só que não sabia a letra e então lia a letra na camiseta dessa mulher mais velha que contracenava comigo (ela usava uma camiseta com a letra da música escrita, não era uma visão minha). Eu achava que estava tudo bem, mas o diretor veio reclamar que eu não podia ficar lendo a letra na camiseta da outra, isso estragava a cena. Eu tinha que saber a letra decor. Ele tinha razão, mas aí criou-se um problema porque eu não sabia mesmo a letra. E pior, eu nem tinha a letra. Tudo o que eu tinha era uma versão da letra em outra língua, que tinha que ficar traduzindo ao mesmo tempo que cantava e é lógico que isso não dava certo e fazia com que eu perdesse o ritmo. Criou-se um mal estar no ensaio, com umas mulheres que não gostavam de mim dizendo que eu tinha que ser substituída e outras que gostavam falando que eu cantava muito bem apesar de não saber a letra. Eu fiquei muito chateada comigo. Como é que eu não tinha pegado a letra, como é que eu não tinha decorado, eu adoro cantar e estava fazendo a coisa que eu mais adorava fazer, por que é que não me preparei melhor? Era só ter tido o cuidado de pegar a letra e ensaiar antes. O diretor disse que ia dar uma última chance, ou eu cantava sem ficar “colando” a letra, ou ele me substituía. Falei para o João puxar a letra pela internet. Ele estava com um laptop, e começou a procurar a letra. Enquanto isso eu fiquei tentando decorar pelo menos a primeira estrofe traduzindo da versão da letra que eu tinha. O João ia abrindo sites e mais sites mas não encontrava a música. Eu falava: eu sei que tem, eu vi outro dia. Rápido, rápido, João. O João estava super solícito, mas não encontrava a letra. De novo eu pensei, caramba, porque eu não baixei a letra quando encontrei, que que custava? Que mania que eu tenho de não me preparar! O ensaio ia recomeçar. Eu tinha decorado mais ou menos a primeira estrofe e minha esperança era que o João achasse a letra antes da mulher que contracenava comigo terminar de cantar. Ela cantou a parte dela. Olhei para trás, o João não encontrava a música. Acho que a música chamava: Terminator. Vi que ia ter que enrolar. Chegou minha vez de cantar. As mulheres que gostavam de mim me olhavam com expectativa, torcendo por mim. As que não gostavam me olhavam com raiva. Me concentrei ao máximo e pensei, ok, já que não sei a letra vou cantar o melhor que posso, vou me movimentar pelo palco e ser expressiva, que nisso eu sou boa, todo mudo aqui canta meio duro, como um poste. Foi o que eu fiz na primeira estrofe em que eu sabia a letra .O rosto das mulheres que gostavam de mim me mostrava que eu estava agradando. Só que quando terminou a primeira estrofe eu não sabia nem chutar a letra então simplesmente parei de cantar e disse: –Infelizmente terei que parar por aqui por que só sei essa parte da letra. E ignorando o que o diretor tinha dito, de que se eu errasse estaria fora, corri até o João para ver se ele tinha encontrado. Ele me disse: está quase, quase, estou quase encontrando.

{1 de novembro de 2003}

 IMAGE CREDITS PETER FARAGO | FREJA BEHA ERICHSEN | SMUG MAGAZINE #4

SOU CANTORA

Comentar
Facebook
WhatsApp
LinkedIn
Twitter
Copiar URL

Tags

canto cantora letra da música não saber a letra palco

Quem viu também curtiu

O COLÉGIO NO CAMINHO

QUE MULHER QUE NÃO É PERTURBADA?

QUATRO CASAMENTOS E UM FUNERAL